por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/07/2018)
Daniel Oliveira
A história nunca pára. Quando a vaga esquerdista na América Latina parecia ter sido irremediavelmente derrotada, o México elegeu o primeiro Presidente de esquerda em 90 anos.
E este é o momento para encher isto de adversativas. Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido pelas iniciais do seu nome AMLO, formou-se politicamente no PRI (Partido Revolucionário Institucional) e o seu nacionalismo de esquerda tem no seu código genético a cultura do autoritarismo patriótico “priísta”. Foi líder e da candidato do PRD (em 2006 e 2012, tendo sido derrotado na primeira através de uma fraude eleitoral), um partido de centro-esquerda que não hesitou em aliar-se ao PAN (de direita) nestas presidenciais. Obrador não vem dos movimentos socialistas nem tem uma formação ideológica sólida. AMLO fundou o Movimento de Regeneração Nacional (Morena) há apenas três anos. O partido não tem implantação nacional e isso obrigou-o a alianças inesperadas e até chocantes, como a que celebrou com o Encontro Nacional, um movimento evangélico reacionário.
Obrador tem um discurso popular e social, tendo sido o único candidato a mostrar preocupação séria com a desigualdade e a pobreza no país e a ser claramente critico do modelo neoliberal. É um defensor do controlo público dos sectores fundamentais da economia, sobretudo o petróleo, a água e o sector elétrico, privatizado pelo Presidente Peña Nieto. Propõe uma política agrícola dirigida aos pequenos produtores rurais e às comunidades indígenas, devolvendo ao México a sua soberania agroalimentar. Tem um discurso fortemente patriótico que seguramente entrará em choque com a retórica xenófoba de humilhação sistemática de Donald Trump. É um critico da militarização do combate ao narcotráfico, que pouco ou nada fez contra o narcotráfico e tem feito tudo pela violência no país. Tem até defendido amnistias para recuperar a paz.
Nada do seu discurso radical o impediu de chegar a acordos com o sector empresarial e financeiro. Isso, a aliança com sectores da Igreja evangélica e até com políticos do PRI impediram uma nova fraude eleitoral. Obrador é um populista (no sentido mais rigoroso do termo), mas um pragmático. Qualquer comparação com Hugo Chávez é fruto de ignorância. Aplicou, na Cidade do México que governou, uma política de austeridade e contenção da despesa que mereceu grandes elogios das agências de notação.
Se tivermos de caracterizar López Obrador, temos de o comparar, com as devidas adaptações ao tempo e à realidade nacional, a Getúlio Vargas, Juan Domingo Perón ou Lázaro Cardenas (que governou o México entre 1934 e 1940, apoiando os republicanos espanhóis e cujo filho fundou o PRD). Um populismo nacionalista de esquerda. Que, curiosamente, consegue manter, na medida do possível, uma relação apaziguadora com uma boa parte da elite económica mexicana.
As contradições de López Obrador, assim como as contradições de Perón, Getúlio Vargas ou Cardenas, são as contradições políticas da América Latina. Mas os quatro pilares do seu discurso – intervencionismo económico do Estado, protecionismo económico, combate à corrupção e políticas sociais – serão uma tendência cada vez maior à esquerda e não apenas na América Latina.
Não me cabe, neste texto, explorar as virtudes do nacionalismo de esquerda perante uma globalização desregulada e as suas contradições perante o crescimento de sentimentos xenófobos.
Apenas sublinho que Obrador é mais uma prova de uma falácia: a de que há uma incompatibilidade entre a esquerda e a nação. Pelo contrário, a nação da revolução francesa ou da América Latina do início do século XIX, fortemente ligada à cidadania, à democracia e à recusa do imperialismo, é geneticamente de esquerda.
Também Obrador, com todas as suas contradições, é fruto de uma crítica de esquerda ao que foram décadas de subordinação, corrupção e miséria impostas por políticas neoliberais que levaram o México ao caos. Obrador não é apenas o fim de um regime no México, é sinal de um tempo.
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