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domingo, 1 de julho de 2018

Ladrões de Bicicletas


Esqueçam a natalidade

Posted: 30 Jun 2018 06:08 PM PDT

O enfoque crescentemente negativo com que se encara a imigração para a Europa, e em particular os fluxos que partem do continente africano e do médio oriente, sugere que, em termos demográficos, a Europa não tem nenhum problema sério para resolver. Isto é, para lá do desprezo a que são sujeitos, na prática, os proclamados valores europeus do humanismo e da solidariedade, parece que a União Europeia não tem consciência da situação em se encontra, podendo assim dispensar os fluxos de entrada como contributo relevante para o seu rejuvenescimento.

O gráfico aqui em cima, contudo, deveria ser suficiente para perceber que o problema dificilmente se resolve, no médio-longo prazo, através da natalidade. Para que se tenha noção, o saldo natural (nascimentos menos óbitos) aproximou-se de zero em 2016 na UE28, na continuação da linha de queda que se regista, apesar das oscilações, desde meados dos anos sessenta. Mais: desde o início dos anos noventa, é o saldo migratório que mais contribui para o aumento da população, atingindo nos últimos anos valores próximos dos 100% na explicação do saldo demográfico (99% em 2016, quando em 1991 o contributo do saldo migratório não chegava a representar 40%).
O caso português não é menos ilustrativo desta tendência. Com a redução e estagnação do saldo natural desde o início da década de noventa, deve-se à imigração (particularmente relevante nesses anos) o aumento mais expressivo da população. E se ambas as dinâmicas (natural e migratória) entram no negativo a partir de 2011, a melhoria do saldo demográfico que se verifica a partir de 2013 resulta, no essencial, da recuperação do saldo migratório (o único que regressa a valores positivos em 2017). De facto, quando se observa a evolução do saldo natural nos últimos anos, constata-se que não só se mantém negativo como não deu, até agora, qualquer sinal de inversão (estabilizando em torno dos -23 mil).

Desengane-se pois quem considera, na Europa ou aqui, que tudo se resolve com o aumento da natalidade. Ou quem acha que esse aumento passa por despejar dinheiro sobre a questão (ainda por cima de forma iníqua, como propôs recentemente o PSD). Se levar à prática os valores humanistas que se apregoam não é razão suficiente para acolher a imigração que chega de forma dramática às portas da Europa, encarem-se então esses fluxos como um contributo indispensável para salvar a demografia europeia e resolver, mesmo que egoisticamente, um problema europeu.

Domenico Losurdo

Posted: 30 Jun 2018 02:31 PM PDT


A ideologia e a historiografia ocidental parecem querer resumir o balanço de um século dramático em uma historieta edificante, que pode ser assim sintetizada: no início do século XX, uma moça fascinante e virtuosa (a senhorita Democracia) é agredida, primeiro por um bruto (o senhor Comunismo) e depois por outro (o senhor Nazi-fascismo); aproveitando também os contrastes entre os dois e através de complexos eventos, a moça consegue enfim libertar-se da terrível ameaça; tornando-se nesse meio tempo mais madura, mas sem perder o seu fascínio, a senhorita Democracia pode agora coroar o seu sonho de amor mediante o casamento com o senhor Capitalismo; cercada pelo respeito e admiração geral, o feliz e inseparável casal adora levar a sua vida entre Washington e Nova Iorque, entre a Casa Branca e Wall Street. Estando assim as coisas, não é mais permitido ter qualquer dúvida: o comunismo é o inimigo implacável da democracia, a qual pôde consolidar-se e desenvolver-se apenas depois de tê-lo derrotado. Todavia, esta historieta edificante nada tem a ver com a história real.
Excerto inicial do artigo “Revolução de Outubro e democracia do Mundo”, da autoria de Domenico Losurdo, filósofo e historiador italiano. Losurdo faleceu anteontem aos 77 anos. A melhor forma de homenagear este grande autor marxista é lê-lo e usá-lo. Para quem nunca o fez, este artigo pode ser um bom sítio para começar. Infelizmente, não creio que haja qualquer obra sua editada em Portugal, em linha com grande parte do que há de mais vital nesta tradição, em geral, e nos seus veios mais críticos do chamado marxismo ocidental, em particular.
Para quem, como eu, tem dificuldade com o italiano, a obra de Losurdo está disponível em castelhano (Viejo Topo), em inglês (Verso) ou em português do Brasil (Boitempo). Por coincidência, na passada quarta-feira, fizemos-lhe uma homenagem no lançamento do livro mais ‘losurdiano’, no método, na erudição e em várias das suas conclusões, que eu conheço em Portugal, o Manual de Sociologia Política da autoria de João Carlos Graça.
Para alguma editora interessada, eu recomendaria começar pela tradução de duas obras de Losurdo: Liberalismo – uma contra-história e Luta de Classes – uma história política e filosófica. Por aqui, o primeiro livro já foi usado por Alexandre Abreu e o segundo por mim. E já nem falo da ascensão da China, onde Losurdo tem também uma visão relativamente rara nos meios da esquerda ocidental, coerente com o resto de uma obra em contra-corrente. Só conheço outro autor, por sinal italiano, com o mesmo tipo de olhar sobre esta complexa formação social: o economista político Giovanni Arrighi, infelizmente também já falecido.
Depois de se ler Losurdo, a história que se conta do liberalismo não pode ser a mesma. É-se compelido a concluir que o inacreditável à vontade com que gente que se diz de esquerda usa a fórmula “democracia liberal” é apenas o produto da sua submissão a uma poderosa ideologia, a que esquece como o liberalismo foi céptico em relação à democracia, ao poder do povo, ao longo da sua história cheia de “cláusulas de exclusão” elitistas e anti-democráticas e de uma imbricação mais longa e profunda do que se reconhece com o patriarcado, o racismo, o colonialismo ou o imperialismo. Depois de se ler Losurdo, passa a ser muito mais difícil excluir da luta de classes a dimensão da luta anti-colonial pela independência nacional. Depois de se ver a filosofia a trabalhar numa obra monumental de reinterpretação da história contemporânea, resgatando-a dos vencedores dos anos noventa, a Revolução de Outubro passa a ler lida sobretudo pelos seus efeitos externos emancipadores.
Se mais não houvesse, e há muito mais na leitura critica, comparativa e contextualizada das ideias enquanto forças materiais, associadas a determinados grupos sociais, isto bastava para afirmar que Losurdo merece ser tão lido por cá quanto o é por outros lados. Isto não quer dizer, naturalmente, que todas as suas análises históricas devam ser subscritas.
Seja como for, tivesse a linha de Losurdo tido mais influência política em Itália e talvez a esquerda desse país não se tivesse transformado na ruína actual.
Vai fazer falta.

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