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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Madonna: o olhar pequeno sobre a pequenez

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/07/2018)

madona

Desde que Madonna chegou a Portugal que o festival de provincianismo tem sido deprimente. E quem mais tem contribuído para ele tem sido a comunicação social, que vai alimentando o orgulho pátrio e bairrista fazendo cada lisboeta e português sentir que respira o mesmo ar que a estrela pop. Que a imprensa cor de rosa se dedique a isso, é natural. Faz parte da sua “função”. Que os jornais de referência o acompanhem sempre me pareceu um pouco mais estranho. Mas adiante.

Quando saiu a primeira notícia sobre o estacionamento de Madonna – excelente deve estar o país e a cidade para esta ser a polémica que alimenta as nossas preocupações – julguei estar perante mais um episódio de bimbalheira nacional. A senhora dona Madonna quer uns lugarzinhos, que não seja por isso, cá estão eles. Não seria de espantar, sabendo que quando Madonna chegou a Lisboa teve direito a boas-vindas de Fernando Medina. O deslumbramento denuncia o atraso. As primeiras notícias sobre este caso confirmavam o meu receio: não tinham conseguido confirmar se havia um contrato e quanto ela pagava e houve jornais que até nos garantiram que o acordo tinha sido oral.

Passados uns dias, as coisas eram um pouco diferentes. A cedência a título precário, de que Madonna não é a única beneficiária na cidade, feita no Palácio Pombal, foi contratada em 2018. Dela resulta o pagamento de 720 euros mensais e é justificada pelo facto dos imóveis que comprou estarem em obras. O contrato foi divulgado e corresponde a outras duas dezenas similares. Incluindo para particulares quando há edifícios em obras. Mas é um contrato difícil de se celebrar, porque é preciso que sejam obras significativas e por um tempo que justifique e que haja espaço disponível próximo.

Há alguma arbitrariedade na forma como estas cedências precárias são feitas e Medina esteve péssimo quando não divulgou imediatamente o contrato. Mas entre o que a comunicação social insinuou no início e o que sabemos agora vai uma razoável diferença. E esta polémica é o melhor retrato da pequenez com que olhamos para nossa própria pequenez.

Pelo menos um órgão de comunicação social (a agência Lusa) tinha a obrigação de o saber porque tem um acordo igual. Estes espaços cedidos para estacionamento são espaços temporariamente vazios para necessidades temporárias e com um pagamento que resulta de uma tabela da EMEL. Tudo está enquadrado pela lei (artigo 148.º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo), apesar do CDS ter dúvidas sobre o rigor dessa aplicação. E, ao que parece, faz parte da gestão corrente que não tem de ser discutida em reunião de Câmara. Mas a verdade é que outras cedências precárias de espaço (ao que parece toda a gente sabe que eles sempre existiram, mas resolveu fazer-se tudo de parvo durante uns dias) passaram pela Câmara.

O parque mais próximo tem um custo mensal de 65 euros por carro, o que corresponderia a mais 255 euros mensais, mas com a vantagem de ser uma solução definitiva e a desvantagem de não ser fácil arranjar 15 lugares. As razões invocadas pela Câmara de Lisboa para ceder o estacionamento em troca de pagamento estipulado pela tabela da EMEL foram semelhantes a de outras cedências – Madonna adquiriu imóveis na zona envolvente à Rua das Janelas Verdes que estão em obras e a ausência temporária de estacionamento para os carros da sua equipa causaria ainda mais problemas numa zona onde o estacionamento é ainda muito difícil.

Ou seja, tudo indica que o contrato assinado para a cedência precária de estacionamento num terreno camarário perante obras profundas em vários imóveis de Madonna parece cumprir todas as regras legais (o CDS contesta), não é inédito (são os próprios vereadores da oposição a reconhecer que discutiram outros em reuniões de Câmara) e os valores cobrados correspondem à tabela da EMEL. Não estamos perante um acordo oral ou informal. Parece-me haver alguma arbitrariedade na forma como estas cedências precárias podem ser feitas, graças a critérios demasiado subjetivos? Sim, tanto para a Madonna como para a Lusa e para os outros poucos beneficiários. Parece-me que Fernando Medina esteve péssimo quando não divulgou imediatamente o contrato e não deu as explicações que dá agora. Claro. Todos temos direito a saber os contratos que que a Câmara assina. Mas entre o que a comunicação social disse no início e o que sabemos agora (graças, por exemplo, ao insuspeito “Observador”) vai uma razoável diferença. E o rigor que exijo aos governantes é aquele que exijo a quem os escrutina. Até porque sem esse rigor não temos escrutínio, temos polémicas passageiras e estéreis que acabam sempre numa névoa que vagamente se assemelha à verdade. O provincianismo com que Madonna foi recebida não é exclusivo de Medina. E esta polémica é o melhor retrato da pequenez com que olhamos para nossa própria pequenez.

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