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quarta-feira, 18 de julho de 2018

Queremos mesmo pagar às pessoas para se reproduzirem?

  por estatuadesal

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 17/07/2018)

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De acordo com os dados do Banco Mundial, Portugal apresentava em 2016 a sexta taxa de fertilidade mais baixa do mundo. As previsões do INE apontam para que a população do país se reduza em mais de 2,5 milhões de habitantes até 2080, caso as tendências recentes se mantenham. Segundo os dados da OCDE, entre os países com economias mais avançadas Portugal é dos que gastam menos com políticas de apoio à família. Face a estes dados, a conclusão parece óbvia: é preciso que o Estado dê mais incentivos financeiros aos portugueses em idade reprodutiva para que tenham mais filhos.

A conclusão parece óbvia, mas não é. Há três perguntas que importa responder antes de dar o debate por encerrado: (1) O país precisa de manter os níveis de população actuais? (2) Aumentar o número de nascimentos é a solução para os desafios demográficos? (3) Os incentivos financeiros à natalidade são a política adequada? As respostas são: não, não e não.

Há quem pareça acreditar que a existência do país e da sua identidade ficam em perigo se a população diminuir no longo prazo. Quem valoriza a identidade nacional deveria lembrar-se que grande parte da história de Portugal se fez com níveis populacionais muito inferiores aos actuais - e que foi sempre marcada por grandes doses de miscigenação, alimentadas por vagas de pessoas oriundas do exterior.

Mais do que a identidade nacional, o argumento habitualmente utilizado para justificar a urgência de uma política de natalidade passa pelo envelhecimento da população. É indiscutível que as alterações demográficas constituem um desafio do ponto de vista financeiro, já que tem vindo a aumentar o número de reformados em proporção das pessoas em idade activa.

No entanto, este é um problema transitório, que irá diluir-se à medida que o fluxo de nascimentos se for reflectindo no número de óbitos. Além disso, o aumento da natalidade é uma solução pouco adequada para enfrentar o desafio da transição demográfica: as crianças que nascerem hoje irão avolumar durante mais de duas décadas - em vez de reduzir - o número de inactivos que não contribuem com impostos ou descontos para a Segurança Social, ao mesmo tempo que irão exigir maiores esforços orçamentais nas áreas da educação, saúde e protecção social. Quem acredita que os desafios das finanças públicas se resolvem por via da natalidade deveria pensar duas vezes.

Também valeria a pena termos presente que o excesso de população humana é hoje um sério problema ambiental de escala global. Se todos os países procurarem resolver os seus problemas aumentando as suas populações, não há planeta nem recursos que cheguem para todos. O controlo da população mundial é um imperativo para ser levado a sério por todos os países.

Em qualquer caso, há várias formas de enfrentar o desafio da transição demográfica nas próximas décadas sem pôr em causa o nível de vida da maioria da população, nem aumentar a pressão populacional sobre o planeta. Isto passa, nomeadamente, por aumentar a produtividade, por reduzir os problemas de saúde através da prevenção, por melhorar a distribuição do rendimento, por diversificar as fontes de financiamento da Segurança Social e, não menos importante, por favorecer os fluxos migratórios, assegurando a devida integração das pessoas que chegam ao país. Do ponto de vista financeiro, a imigração é uma via mais adequada do que o aumento da natalidade para enfrentar o desafio da transição demográfica, na medida em que permite arrecadar receitas de impostos e contribuições sociais no curto prazo.

Dito isto, parece claro que há muita gente em Portugal que desejaria ter filhos e não os tem por falta de condições financeiras, o que impede a realização de um direito humano e constitucional. Mas antes de chegar aos incentivos monetários - isto é, antes de darmos preços aos filhos - deveríamos preocupar-nos com o que mais conta (e que pesa menos no Orçamento do Estado): estabilidade no emprego, horários de trabalho que permitam aos adultos acompanhar as crianças e os jovens a seu cargo, partilha das tarefas domésticas entre homens e mulheres, um serviço público de ensino pré-escolar desde a primeira infância. Se pensarmos bem, estas são medidas que têm que ver com igualdade de oportunidades, com igualdade de género e com qualificação da população. A natalidade é aqui uma questão de segunda ordem.

O Estado deve ocupar-se com a construção de uma sociedade mais justa, mais inclusiva e mais capaz. Se o fizer, teremos melhores condições para lidar com os desafios que enfrentamos, haja ou não mais crianças nascidas em Portugal. Quando lá chegarmos, quem quiser ter filhos - biológicos ou adoptados - tê-los-á por iniciativa própria. O Estado não precisa de interferir nas escolhas íntimas de cada um.

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