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sábado, 24 de novembro de 2018

A ministra fura-greves

  por estatuadesal

(José Soeiro, in Expresso Diário,  23/11/2018)

soeiro

(Caro António Costa. As gentes de esquerda até te tem perdoado o fervor europeísta e essa obssessão na redução do déficit e no cumprimento do Tratado Orçamental. Na verdade, um pequeno país como Portugal, não tem condições para desafiar isoladamente a política austeritária da União Europeia.

Já quanto à constestação laboral que a tua ministra fez questão de torpedear e que capciosamente quiseste considerar ilegítima, não há perdão possível.

Não basta dizeres que és contra a precariedade se és o primeiro a promovê-la. Estou infelizmente a chegar à conclusão de que, mais depressa defendes os direitos dos animais, como se viu com os touros, do que os direitos de quem trabalha, como se vê com os estivadores.

Comentário da Estátua, 24/11/2018)


Por estes dias, no porto de Setúbal, não se decide apenas a vida de cerca de 90 estivadores, condenados há décadas ao trabalho à jorna, sem direitos, sem proteção, sem vínculo. Ali, naquele porto, é muito mais o que está em causa. É saber que gente somos, de que lado estamos e que país queremos ser.

Há o país dos patrões da estiva, que acham que podem tudo. Que os trabalhadores são mercadoria e carne para canhão, alugados ao dia, convocados por sms, sem proteção na doença ou na maternidade, sem direito a organizar-se e a ter direitos. No país da Operestiva (a empresa detida pelo grupo turco Yildirim, que opera no porto de Setúbal), não há negociação coletiva nem Constituição. É tanta a arrogância e a sede de dominação que, para esta empresa, mais vale um porto paralisado do que fazer um contrato coletivo. Em caso de aperto, recrutam-se ao desespero uns mercenários, paga-se umas centenas de euros a um punhado de fura-greves e negoceia-se com o Governo uma manobra para esmagar quem trabalha: autocarro de vidro-escuro para esconder a cara de quem lá vai dentro, polícia de intervenção para varrer para o lado os que, de pé ou sentados no chão com os braços dados, fazem uma barreira contra a escravatura e a falta de escrúpulos. Quem defende isto não está a pensar na Auto-Europa nem apenas em Setúbal. Quer espalhar por todo o lado o paraíso dos patrões: contratos ao dia, praças de jorna e trabalhadores amordaçados, domesticados pelo medo de haver alguém que os substitua amanhã, que lhes fique com o trabalho e o salário.

Contra este país, os estivadores. Se o porto pára quando eles páram, então é porque os precários de Setúbal, trabalhadores “eventuais” há 15 ou 20 anos, são necessários. Não vale a pena inventar: um porto não funciona com 90% de trabalhadores contratados ao dia. Isso é uma mentira. Nenhuma necessidade temporária, nenhum pico de atividade, corresponde a 90% do trabalho ao longo de 20 anos. Os estivadores de Setúbal – e o seu sindicato, o SEAL – são a voz da razão contra esta fraude escancarada. Mas são mais do que isso. São, hoje, a cara de um país que acha que o direito à greve – direito com que ganhámos as 40 horas e as férias pagas, os fins de semana e a proteção na doença e no desemprego, a educação pública e o direito à associação – não é para ser evacuado da Constituição. Resistir a este modelo de precarização que tem sido testado no setor da estiva não diz respeito apenas a eles, estivadores. A unidade da estiva aponta o caminho e é uma lição. Mas isto é com todos e todas.

Finalmente, o Governo. De que lado está? Uma operação como a de ontem, com fura-greves a entrar num porto nacional, com a mobilização da polícia para proteger a manobra da Operestiva, compromete diretamente o Governo e o PS. Não há volta a dar. É sabido o argumento formal que será utilizado: não se desrespeitou nenhuma greve porque, com contratos que acabam ao fim de cada dia, estes trabalhadores não estão, formalmente, em greve. Essa habilidade jurídica é puro cinismo: a ausência de contrato é precisamente a causa da greve. No tempo em que os sindicatos eram proibidos, os trabalhadores também paravam. Não o faziam por terem contrato e direitos. Tiveram contrato e direitos porque fizeram greves nas mesmas condições em que hoje os eventuais de Setúbal fazem, contra leis e relações de trabalho que lhes negavam (e negam hoje) esse direito.

A Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, tinha por isso uma responsabilidade: obrigar empresas e sindicato a sentar-se à mesa e promover uma solução para pôr a funcionar o porto de Setúbal, que passa necessariamente por um contrato coletivo de trabalho que acabe com a precariedade destes trabalhadores e das suas famílias, vinculando-os. E tem um poder enorme que pode e deve utilizar: o poder de retirar a licença de concessão a uma empresa que se revele incapaz de ter os trabalhadores necessários para assegurar o funcionamento do Porto.

Em vez disso, preferiu arquitetar pela calada com essas mesmas empresas uma manobra para aniquilar a luta contra a precariedade e para atropelar o direito à greve do elo mais fraco desta história: os precários que precisam daquele trabalho para comer. É um precedente muito grave para a nossa democracia, que este Governo decidiu abrir. É uma escolha repugnante para quem tenha algum apego pela democracia, pelos direitos constitucionais e por quem vive do seu trabalho – e luta pela sua dignidade.

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