por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 23/11/2018)
Daniel Oliveira
O porto de Setúbal tem o recorde nacional de trabalhadores precários: 90%. Há trabalhadores com contratos diários há uma década. Todos os dias são escalados por turno e cada turno é um contrato novo. A situação é de tal forma chocante que qualquer crítica a esta greve é um insulto à dignidade de todos os trabalhadores. Se estes estivadores não têm razão para fazer uma greve ninguém a terá. Causam prejuízo para o país? A responsabilidade é de quem acha admissível manter trabalhadores à jorna durante décadas.
Sendo precários, os trabalhadores que diariamente garantem o funcionamento do porto de Setúbal não são, de facto, trabalhadores do porto de Setúbal. E assim sendo, quando fizeram a greve foram substituídos por outros contratados, vindos ninguém sabe de onde e em que condições. Quando tentavam bloquear a entrada ao autocarro que trazia os que os iam substituir, os estivadores não impediam colegas que legitimamente não queriam aderir à greve de chegar ao seu posto de trabalho. Impediam uma fraude à lei da greve. Uma fraude que se baseia na legitimação de que estes homens não são na realidade trabalhadores. E que por isso nem direito a fazer greve têm.
A polícia de choque foi chamada ao local e, um a um, os grevistas (e alguns deputados que lhes prestavam solidariedade) foram retirados. A PSP cumpriu ordens e não usou de violência. A responsabilidade é de quem usou dos meios do Estado para ajudar uma empresa a ludibriar a lei. A responsabilidade é de quem, no Governo, na quinta-feira foi cúmplice de um vergonhoso ataque ao direito à greve e à dignidade de quem trabalha. Bloco de Esquerda e PCP têm de ser bem claros na exigência de explicações e nas respetivas repercussões políticas.
A ambiguidade da lei serve para tirar aos estivadores o direito à greve que efetivamente é seu e para dar aos juízes o direito à greve que dificilmente lhes pertence
Ao mesmo tempo que os estivadores eram impedidos, na prática, de exercer o seu direito à greve – o que implica não serem substituídos por outras pessoas –, uma outra greve de contornos legais muitíssimo mais discutíveis continua sem que ninguém reaja. Temos titulares de órgãos de soberania a paralisarem a função judicial do Estado, comportando-se como se fossem funcionários públicos.
Os juízes não têm um trabalho subordinado. Não são meros trabalhadores do Estado. São a cúpula do Estado. Fazerem greve faz tanto sentido como o Presidente da República suspender funções para que o Parlamento lhe aumente o salário. O facto de serem titulares de órgão de soberania dá-lhes direitos especiais. Não podem, por exemplo, ser julgados ou investigados a não ser por um tribunal ou procurador de instância que lhe seja superior. E se têm direitos especiais não podem, na hora da greve, fingir que são funcionários públicos como os outros.
A greve dos estivadores é pelo mínimo dos mínimos. A greve dos juízes é pela sua “independência”, o que se resume, na prática, a uma reivindicação remuneratória. Porque no resto consideram-se, ao fazerem uma greve, trabalhadores subordinados.
A ambiguidade da lei serve para tirar aos estivadores o direito à greve que efetivamente é seu e para dar aos juízes o direito à greve que dificilmente lhes pertence. Para uns a polícia da República, para outros a resignação da República. E é assim porque assim tem de ser: uns mandam, outros obedecem.
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