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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Debaixo do tapete de Joana Marques Vidal e Cavaco

  por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 15/11/2018)

CAVACO_JOANA_1

A forma como o final de mandato de Joana Marques Vidal foi politizado ofuscou, por desvio e saturação, a politização com que foi cumprido e a politização que lhe deu origem. No fim e no princípio, inclusive na sua pré-história, encontramos Cavaco. E encontrar Cavaco é olhar para o chefe da decadente direita portuguesa desde 1985 até ao presente.

Em 2007, a direita entra na sua mais profunda crise após o 25 de Novembro. O PS leva dois anos de maioria absoluta com um líder carismático e um projecto de modernização da economia e da sociedade que obtém aplausos quase unânimes e resultados aquém e além fronteiras. Não existe ninguém na direita que sequer chegue aos calcanhares de Sócrates no apelo eleitoral, o que leva à queda do cavaquista Marques Mendes como presidente do PSD e à entrada em cena de Luís Filipe Menezes, uma anedota ambulante. Ao mesmo tempo, no BCP rebenta uma guerra intestina entre Jardim Gonçalves e o seu delfim, Paulo Teixeira Pinto, a qual levaria no ano seguinte à saída de ambos da instituição e a uma radical alteração accionista, entre outras consequências graves no plano judicial. O BCP não se limitava a ser o maior banco privado português, era igualmente um monumento piramidal da supremacia ideológica e financeira do conservadorismo de fachada belicamente católica. A sua desgraça, juntamente com a do BPN e do BPP em 2008 e 2009, deixou a direita oligárquica portuguesa num estado de pânico e horror. A vingança pela perda dos bastiões financeiros e simbólicos queria-se imediata e servida a ferver. Cavaco, até então um Presidente da República que tinha optado por cooperar com o Governo socialista maioritário na intenção de ir conseguindo fazer negócios para os seus, era a única réstia de esperança da estrutura do poder laranja que via crescer uma crise económica mundial inaudita sem ter ninguém nos seus quadros para sequer conseguir beliscar o PS nas eleições de 2009. Neste ambiente de desespero, antes de se conseguir dar um chuto nos cueiros do doutor choramingas e sua ciência de Gaia, até se ensaiou começar a falar num Governo presidencial, com ou sem alteração constitucional respectiva. Um bloqueio dos camionistas, em Junho de 2008, ensaiou um alarme social cuja finalidade era o desgaste abrupto do Governo e a entrada no ano eleitoral num ambiente de ameaça à ordem pública. Foi folclórico, foi obra de uns jarretas, mas foi também a primeira resposta de Cavaco aos pedidos de socorro dos seus amigos, seguindo um manual clássico de desestabilização e guerrilha política.

Com a colocação de Manuela Ferreira Leite na presidência do PSD, em meados de 2008, Belém voltou a controlar a Lapa. Podia dar-se início a uma estratégia concertada que iria ter como bandeira o tema da “verdade” – “Falar verdade aos portugueses”, lema de Cavaco; “Política de Verdade”, lema do PSD – escolhido precisamente para apontar ao carácter e conduta de Sócrates, doravante obsessivamente atacado como “mentiroso”. Não passava da arma mais antiga e mais baixa do catálogo das pulhices políticas, mas que no caso iria introduzir em Portugal uma operação de judicialização da política sem precedentes. O “Freeport” foi recuperado nos finais de 2008 e foi explorado de todas as maneiras e feitios até às eleições legislativas de 2009 sem interrupções. Não sei quantos outros casos, da licenciatura às casas na Guarda, do Magalhães à eventual compra da TVI pela PT, foram lançados para gerar um clima de perseguição ininterrupta e impiedosa. Em Aveiro, iniciou-se uma operação ilegal de espionagem de um primeiro-ministro através de um seu amigo que é metido à força num caso pindérico de um sucateiro. Daqui, parte-se para a tentativa de perverter as eleições de 2009 com a criação de um caso judicial falso. Finalmente, e de modo análogo, lança-se a inventona de que o Governo estaria a espiar Cavaco e leva-se essa suspeita até às eleições de 2009. Nunca tal perseguição se tinha visto na Grei, a direita portuguesa estava a lutar pela sobrevivência com pavor e ódio, raiando o toque a rebate para pegarem em armas. Ao seu lado, comunistas e bloquistas enchiam as ruas e os ecrãs com homéricas declarações de ódio ao Governo e ao PS, de que as manifestações de professores foram o fenómeno sociológica e mediaticamente mais impressionante nessa legislatura. Fechando o cerco, não existia então, como não existe agora, sequer um órgão de comunicação social que defendesse editorialmente, ou que no mínimo fizesse spin a seu favor, o Governo socialista e o PS. Era exacta, precisa e completamente ao contrário.

A Manela perdeu, o PSD foi para eleições internas preparar o brevíssimo ciclo político posto que o Governo minoritário de Sócrates iria cair assim que o Aníbal iniciasse o seu segundo mandato. Até lá, com a pressurosa e entusiasmada colaboração do BE e do PCP, os socialistas iriam ser assados em lume raras vezes brando. Na disputa laranja, o cavaquista Paulo Rangel, dado como favorito, revelou-se não só ingénuo como inepto no páreo com Passos – já então um especialista em “fake news avant la lettre“, como mais tarde Fernando Moreira de Sá viria a explicar numa tese de mestrado de fazer corar as paredes da Assembleia da República. O Pedro foi a escolha estética de um eleitorado social-democrata que sonhava ter o seu Sócrates, visto e sentido como o tipo de líder ideal para a direita. Havia que afastar o bafio do Cavaquistão que Ferreira Leite, Paulo Rangel e Aguiar-Branco exalavam. O Pedro dava muito melhores tempos de antena, tinha um cabelo à beto e uma voz de barítono. Ideias? Qualquer coisa empapada com cuspo servia, era indiferente. Ganhou, mesmo depois de se ter colado a Sócrates quando fazia oposição interna a Ferreira Leite. Acontece que este garboso rapaz era também um ser político sem qualquer escrúpulo, tendo feito a rodagem no complexo de empresas do laranjal e vivendo à pala do tio Ângelo Correia e de um parceiro de altos e baixíssimos voos, Miguel Relvas. Estava prontíssimo para despachar uns milhões de piegas para fora da sua zona de conforto. Cavaco, que teria preferido lidar com um dos seus pretorianos, rapidamente se concertou com Passos em relação ao essencial: afundar o País ao boicotarem o acordo com a Europa que teria evitado o resgate de emergência e ter um comissário político na Procuradoria-Geral da República capaz de, nas imortais palavras do Manuel Carvalho, acabar com os “resquícios de uma Justiça burocrática”.

Acima a pré-história do que em 2012 foi conseguido, a colocação na Procuradoria-Geral da República de alguém que permitisse abusos de poder e crimes já tentados em 2009, mas abortados pela integridade de quem defendeu a Lei. Havendo indícios judicialmente legítimos para meter Sócrates na condição de arguido, e havia, o processo poderia ter seguido dois caminhos, e apenas dois: (i) blindagem absoluta a qualquer forma de ilegalidade e aproveitamento político dada a gravidade histórica e partidária de se suspeitar que um ex-primeiro-ministro pudesse ser acusado de corrupção; (ii) aproveitamento político de uma extraordinária ocasião para atingir o PS e provocar um desequilíbrio partidário a favor do PSD e CDS que durasse algumas legislaturas ou que conseguisse mesmo destruir o Partido Socialista, doravante e para todo o sempre associado à corrupção – de caminho, e como primeira motivação, executar uma das maiores vinganças na História de Portugal. Soubemos meses antes da espectacular detenção de Sócrates para português ver qual dos caminhos iria ser o da PGR. Quando em Julho de 2014, sem ainda existir publicamente a “Operação Marquês” e sem qualquer cidadão ter ainda sido constituído arguido, foi publicado pela Cofina o núcleo central das teses acusatórias dos procuradores que viriam com base nelas a conseguir prender Sócrates – calendário que só se explica pela ocorrência de eleições no PS onde Seguro agitava a bandeira justiceira e persecutória contra os “socráticos corruptos” alegadamente representados por Costa – ficámos todos a saber que Sócrates iria ser usado como arma política pela própria Justiça em conluio criminoso com impérios da comunicação e jornalistas.

Joana Marques Vidal nunca apareceu em público com uma camisola onde se lesse “Sócrates, é desta que vais dentro” ou “Fodi-te bem, Pinóquio”, pelo que o seu método poderá ter passado despercebido a crianças de 9 anos (mas não todas). Ele é, no entanto, estupidamente simples: usar o incomensurável poder do Ministério Público para devassar e coagir cidadãos. Esse poder não precisa de ser usado de forma ilegal para ser uma violação do Estado de direito e das mais básicas noções constitucionais a respeito da democracia e dos direitos individuais. Aliás, nada justifica que se faça uso indevido dessa capacidade para exercer violência em nome do Estado em casos onde não haja nenhum prémio político (ou de outro tipo) que o justifique. Quem fosse por esse caminho acabaria rapidamente, ou fatalmente, denunciado e castigado, expulso pelo sistema. Porém, contudo, todavia, havendo um prémio político colossal em jogo, algo historicamente imperdível e com clientes facticamente poderosíssimos dispostos a apoiar a execução do plano, então algo como a “Operação Marquês” pode avançar sem que os mandantes e executantes se sintam ameaçados seja por quem for.

Joana Marques Vidal notabilizou-se por aparecer em público a desvalorizar, abafar e mesmo ridicularizar as violações do segredo de justiça que foram parte material da estratégia de assassinato de carácter, ataque político e condicionamento judicial. Nunca teve de justificar por que razão foi conivente com a detenção e prisão de Sócrates sem provas para tal, nunca teve de justificar por que razão se fez da “Operação Marquês” um megaprocesso, nunca parou de usar a sua palavra, e especialmente o seu silêncio, para apoiar e exponenciar a fétida e alucinada campanha para a renovação do seu mandato. A sua maior perversidade consistiu em dominar a duplicidade discursiva que lhe permitia manter uma pose institucionalmente imaculada ao mesmo tempo que alimentava as explorações mediáticas dos que usaram o seu nome com hipocrisia e deboche para perseguirem adversários políticos. Assistiu calada e deleitada, de braço dado com Carlos Alexandre, ao lançamento no espaço público de mensagens que apelam ao regresso a um Estado policial como forma de disputa política onde se consegue prender os adversários. A lógica imanente a este contexto foi levada às ultimas consequências e gerou a inacreditável experiência de termos visto um ex-primeiro-ministro e um ex-Presidente da República a acusarem os actuais primeiro-ministro e Presidente da República de serem criminosos por estarem a substituir quem tinha servido tão bem as agendas políticas de um sector do País.

Cavaco e Joana Marques Vidal. Joana Marques Vidal e Cavaco. Pelo que representam, pelo poder que lhes foi dado em nome do Estado, e pelo que fizeram nessas funções onde ficam associados à utilização dos cargos para perverter a democracia, são a manifestação e consubstanciação de outras forças. Eles são a prova de que o regime concede à direita o uso do Estado para exercer violência política, abusos esses nunca sindicados sequer pela imprensa posto que esta, no máximo e excepcionalmente, só consegue ser neutral e pela rama quando se trata de expor a agenda da oligarquia.

Não por acaso, o cavaquismo, essa mistela de propalada santidade à moda de Boliqueime com cinismo rapace e prepotente, foi o herdeiro directo do salazarismo antropológico que o 25 de Abril não varreu – apenas conseguiu meter debaixo do tapete.

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