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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Entre as brumas da memória


Natais em exílios e clandestinidades

Posted: 19 Dec 2018 01:16 PM PST

Nuno Ramos de Almeida resume a sua experiência. Era assim.

O Natal é vermelho.

«Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher uma pedra.»

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19.12.1924 – Alexandre O'Neill

Posted: 19 Dec 2018 10:41 AM PST

Alexandre O'Neill faria hoje 94 anos. Bem gostaria de o ouvir sobre os tempos que agora passam, de o ver olhar este país, de perceber se as três sílabas de Portugal ainda são de plástico ou se já foram recicladas. É verdade que ainda «há mar e mar, há ir e voltar» – e ar e ar, com ou sem voar. Em todo o caso, uma coisa é certa: o país continua mais ou menos engravatado todo o ano e a assoar-se à gravata por engano.

O País Relativo
País por conhecer, por escrever, por ler...
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
- Não, não é para mim este país!
Mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
Entrincheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
País do cibinho mastigado
devagarinho.
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de alegria.
Moroso país da surda cólera,
do repente que se quer feliz.
Já sabemos, país, que és um homenzinho...
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto de nuvens ideia!
Corre, boleada, pelo azul,
a frota de nuvens pelo país.
País desconfiado a reolhar por cima
dum ombro que, com razão, duvida.
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania
sem perder tempo nem caligrafia.
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida!
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
Que Santa Suplicanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
Da ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste pra mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!"
Alexandre O'Neill, Feira Cabisbaixa, 1965

Programas de Opinião Pública

Posted: 19 Dec 2018 07:24 AM PST

Só eu é que considero que a maior parte destes programas têm temas completamente disparatados para o fim a que, teoricamente, deviam destinar-se: dar voz sensata à sociedade civil?

Hoje liguei a TV e estavam os meus concidadãos a perorar sobre a polémica da constituição do Conselho Superior do Ministério Público. Que manifestavam perceber do tema? Nada, pouco mais ou menos o que é o meu caso.

Chegada ao carro, apanhei outros em declarações definitivas, sem qualquer «nuance» e com laivos de tecnicidade, sobre culpados e responsáveis pelo acidente do helicóptero do INEM.

Ninguém pára estes dislates, só úteis para atiçar matilhas (o PAN que me desculpe...)?

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Eles andam por aí

Posted: 19 Dec 2018 01:35 AM PST

«Eles sempre andaram por aí, na verdade, mas as gerações mudam. A extrema-direita tem entre nós uma raiz histórica e uma base social, há alguns anos houve gente suficiente para eleger numa televisão Salazar como a figura portuguesa do século XX. Mas tentativas de fazer renascer uma política fascizante logo após a revolução, nos anos setenta, mesmo quando figuras como Spínola, Champalimaud e tantos outros apareciam a liderar e a financiar os seus grupos armados, tinham sido goradas pela infâmia. Absorvidos pouco depois do 25 de Abril em partidos tradicionais, dadas as circunstâncias do colapso lúgubre do regime ditatorial, essa direita readaptou-se, alguns chegaram a ministros, todos fizeram pela vida. E assim foram passando os anos.

Quatro décadas depois, é uma outra extrema-direita que emerge. Vale a pena discutir essa especificidade, porque esse entendimento é a condição para responder ao risco. O que há de novo é que o espaço político desta nova extrema-direita não é saudade do império, mas a globalização infeliz; não é o desfile das fardas milicianas, mas o esvaziamento democrático; não é o delírio ideológico, mas o efeito profundo da austeridade. Ela vai portanto crescer. E essa novidade faz sistema: repare que nos anos setenta as ditaduras caíam na Europa (Portugal, Espanha, Grécia) enquanto venciam em contra-ciclo na América Latina (Chile, Uruguai, Argentina), ao passo que agora o movimento trumpiano impulsiona mudanças coincidentes em todo o mundo (de Washington a Orban, Le Pen, Salvini, Bolsonaro e o que mais se verá), que tomam ou que condicionam o poder. O seu sucesso pode ser medido, os populistas governam hoje uma parte maior da população mundial do que as democracias tradicionais, ao mesmo tempo que contamina as direitas clássicas, que cedem à tentação da imitação.

Tem sido muito discutida a maravilha tecnológica que abriu as oportunidades da expansão universal ao discurso de ódio, que é essencial para este ascenso da extrema-direita. É facto que as redes sociais constituem uma forma notável para definir uma nova atmosfera em que se respira pavor, ladeando os meios de comunicação social que seriam um ténue filtro do mundo, ao selecionarem as notícias e os comentários com critérios que reclamam uma aura de legitimidade. É também evidente que essa forma de atuação incendiária já era cumprida por alguma imprensa de escândalos (e, há duas gerações, como lembra Karl Kraus, o fascismo e a guerra eram cantados pela imprensa, tempos passados), que naturalmente neste momento se expande no tempo novo do trumpismo. Sem esta tecnologia, a extrema-direita não conseguiria criar o seu universo separado, e precisa dele para se tornar eleitoralmente viável (o risco parece ser uma surpresa para os mais desatentos, quando falei sobre isso há tempos fui atacado em editorial de um jornal respeitável).

Ora, a tecnologia do discurso do ódio é eficaz se tiver quem acredite nele. A questão é que há uma multidão para isso, precisamente as pessoas que sentem o choque entre a promessa deslumbrante de um mundo de néon ou confettis e a realidade do salário baixo, da filha desempregada, da biografia gasta no comboio para os subúrbios, tudo o que a austeridade banalizou e agravou. Se os donos do país se exibem em desfalques, se governantes sorumbáticos explicam que cumprem ordens de uma capital distante, ou se a vida anda para trás, como se diz em bom português, esta tensão torna-se explosiva. Entra então a técnica política, a canalização da frustração com a invisibilidade – Macron chamou-lhes a “gente que não é nada” e Clinton os “deploráveis” - contra algum alvo vulnerável, os migrantes, os mexicanos, os ciganos, os sindicalistas, os homossexuais. Aliás, esse discurso contamina parte da sociedade, durante a campanha brasileira houve esquerdistas lusas capazes de afirmar que o protesto das mulheres contra Bolsonaro o ajudava e que deviam era estar caladas.

O primeiro passo, constituir nutridas listas para a campanha subterrânea por via do WhatsApp, já está avançado. O segundo, por de lado os fascistas folclóricos que andam de saudação romana há anos e anos, também. O terceiro, encontrar o discurso certo para assustar não assustando demasiado, ainda está em ensaios, para já Camilo Lourenço fala com delicadeza de “cheiro a napalm”. O que agora está em causa em Portugal é simplesmente a demonstração de que não haverá recanto do mundo em que este discurso não se instale. Com as sondagens a começarem a descobrir que pode haver uma surpresa no terreno propício das europeias (em que Marinho Pinto teve 7% na última eleição, mesmo que logo depois desbancasse para quase nada), a extrema-direita, que já tentou no passado inúmeros protestos do “milhão” contra “os políticos”, tem pela primeira vez na sua mão a possibilidade de conjugar as espirais de ressentimento nas redes sociais com algum discurso religioso ou apocalíptico que prometa tudo e o seu contrário. Em Espanha, isto só resultou eleitoralmente quando dissidentes do principal partido da direita tomaram conta desse discurso. E, como se vê aqui, o CDS, que esperava que bastasse ficar sentado para captar o descontentamento dentro do PSD, moveu-se logo para imitar envergonhadamente os “coletes amarelos”, pondo Assunção Cristas na estrada a pedir boleia ao descontentamento contra o estado do pavimento e a atacar o “caráter” do primeiro-ministro. Só que, mesmo imitando-o, talvez seja tarde para a velha direita evitar que surja um partido de extrema-direita com expressão eleitoral, o fantasma está mesmo a sair do armário. Eles nunca deixaram de estar aqui e agora vão mostrar-se.

Para o país, o tempo que há é este e a resposta é a mais difícil: a habitação que falta, a punição dos desvarios financeiros, o direito de quem trabalha, o rigor dos representantes e a soberania da nação. Não vale a pena esperar por algum consenso que leve a essa democratização da vida, já se sabe que quem manda se considera ungido de deus, nada se moverá e só ouviremos que o Natal é todos os dias. Resta saber se a esquerda quer ter a ambição de ser tão forte na rua como no voto.»

Francisco Louçã

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