Translate

sábado, 22 de dezembro de 2018

O Ministério Público, a autonomia e a democracia

  por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/12/2018)

mst

Miguel Sousa Tavares

(Nem sempre concordo com os pontos de vista do MST, sobretudo quando trata os funcionários públicos como um bando de calaceiros privilegiados. Contudo, tenho que lhe reconhecer a coragem de defender as suas opiniões, muitas vezes contra ventos e marés, com destemor e desassombro.

É o que passa nesta crónica onde revela a coragem de discutir frontalmente a "independência do Ministério Público", tema perante o qual quase todos os políticos e outros comentadores se agacham cobardemente, fechando os olhos à bandalheira em que a Justiça se transformou no seu conúbio com uma comunicação social cada vez mais venal e populista.

Comentário da Estátua, 22/12/2018)


Começo por dizer que, em boa verdade, creio que toda esta acesa discussão sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público, caso a mesma seja alterada, será, na práctica, sem consequências. Porque, mesmo que venha a haver uma maioria de membros “civis”, chamemos-lhes assim, no dito Conselho, eles tenderão fatalmente a comportar-se e a decidirem tal como os membros oriundos do próprio corpo do MP: porque escolhidos cautelarmente com tal perfil, por osmose corporativa ou por temor reverencial. Nada de essencial mudará, apesar de todo o espavento que por aí vai. Todavia, a discussão é certamente importante em termos políticos e eloquente em termos de demarcação de territórios.

Comecemos pela questão constitucional, trazida a terreiro pelos magistrados do MP e respectivo sindicato e, tão extemporânea e insolitamente, pelo próprio Presidente da República, o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa. A autonomia do MP, garantida na Constituição, nada tem que ver e em nada colide com uma eventual maioria de membros “civis” do Conselho, assunto sobre o qual a Constituição é omissa. E, muito embora, por mais que isso repugne à corporação em causa, eu entenda que a própria autonomia do MP — nos termos amplos e absolutos em que existe e é praticada entre nós — também merecia ser discutida e questionada, a verdade é que a letra da Constituição não o permite e não será, obviamente, um Conselho cujos poderes são apenas os de gestão e disciplina do corpo do MP, que se atreveria a ir meter o nariz nos processos em mão dos magistrados, dizer-lhes o que deveriam ou não investigar, quando deveriam acusar ou arquivar, independentemente de a sua composição maioritária ser uma ou outra. Além de mais, alguém imagina que os membros do Conselho nunca tenham lido o “Correio da Manhã” e desconheçam quem sejam os seus amigos de estimação?

O argumento, aliás, não resiste à comparação com o que se passa com o órgão similar dos juízes, o Conselho Superior da Magistratura, onde a maioria dos membros são “civis”, ao contrário do que sucede no CSMP. Ora, se muitos países há em que os magistrados do MP não gozam da independência e autonomia (pelo menos, nos termos amplos que gozam entre nós) — porque se entende que assim os governos não podem ter uma política de Justiça nem podem ser responsabilizados por ela — não há nenhum país onde não se entenda que a independência e total autonomia dos juízes não seja essencial à democracia. Não sendo Portugal excepção, como se justifica então que se viva tão pacificamente com os juízes a serem governados e fiscalizados por um Conselho onde a maioria dos membros não é juiz e só no caso dos magistrados do MP é que idêntico regime colocaria em causa a sua autonomia?

O que está subjacente a esta discussão é a coragem ou a falta dela para enfrentar um poder cada dia menos transparente e menos democrático

Se alguma questão constitucional se levanta aqui ela é, de facto, a intromissão, totalmente abusiva e insólita, nos poderes legislativos reservados da Assembleia da República por parte de outro órgão de soberania — o Presidente —, da procuradora-geral da República e do Sindicato do MP. O primeiro, ameaçando vetar um diploma da Assembleia antes de ele existir, a segunda ameaçando demitir-se se ele existir e o terceiro ameaçando com uma greve se os deputados se atreverem sequer a pensar no assunto. É caso para perguntar se alguém, porventura, se preocupou com a autonomia do Parlamento, por acaso também garantida na Constituição e antes de todas as outras?

Mas deixemos de lado as questões formais e vamos às substanciais. O que está aqui em causa é, afinal, muito simples de enunciar, embora salvaguardando que tudo isto é teórico, pois que, repito, é minha convicção que, mudando na superfície as coisas, nada de essencial mudaria. Em termos simples, o que se discute é se o MP — não todo ele, obviamente, nem sequer a maioria, acredito, mas parte liderante dele — deve ou não continuar a funcionar em roda livre, entregue a si mesmo e unicamente aos critérios éticos e funcionais dos seus pares. Se o corpo do MP deve ser a excepção no sistema de poderes e contrapoderes que caracterizam as sociedades democráticas, em que a cada poder se contrapõe outro poder, que o vigia e que, para isso, não pode ser controlado por si próprio. Mas, além disso, e indo do abstracto para o concreto, o que está subjacente a esta discussão, embora ninguém se atreva a dizê-lo em voz alta, é a coragem ou a falta dela para enfrentar um poder cada dia menos transparente e menos democrático. Ou, se preferirem e falando ainda mais claro, se, por exemplo, temos de continuar resignadamente a viver, indignados uns, radiantes outros, com o total desrespeito dos direitos dos arguidos, com a geral devassa da vida alheia, com a escandalosa violação da correspondência privada de quem nem sequer é objecto de suspeitas de qualquer crime, tudo promovido às claras por um indecente conúbio entre certos senhores magistrados do MP e a imprensa de sarjeta, perante o silêncio cúmplice do CSMP, do Sindicato e da hierarquia da PGR. Se temos de continuar a esboçar sorrisos irónicos de cada vez que lemos um comunicado da PGR determinando mais um “rigoroso inquérito” a mais uma escandalosa violação do segredo de justiça de um processo à guarda de um senhor magistrado do MP e que jamais, de memória de homem, terminaram com conclusão alguma, como se não houvesse forma de guardar o segredo ou de encontrar o seu violador — eles, cuja especialização é justamente a de guardar segredos e desvendar crimes.

Tudo isto é feito sob o santo e a senha do “combate à corrupção”, um salvo-conduto cujo simples enunciado tem o dom de pôr toda a gente a tremer de medo e veneração, abrindo as portas a tudo, tornando aceitáveis e inevitáveis coisas que só na pele se percebe como são repelentes, tornando dispensáveis coisas a que chamam “formalidades” e que, todavia, são muitas vezes o que distingue um estado policial de um Estado de direito. Quando a sagrada palavra “corrupção” é invocada, mesmo a imprensa de referência deixa de questionar procedimentos que noutras circunstâncias lhe levantariam mais do que dúvidas, com medo de ser arrolada como conivente ou complacente com os “corruptos” — ainda que muitas vezes a palavra “corrupção” sirva para abranger todo um mundo de outras coisas que nada têm que ver com um crime de corrupção em si mesmo.

E os políticos, claro, batem em prudente retirada assim que vislumbram no horizonte os três cavaleiros do Apocalipse: corrupção, Ministério Público e “Correio da Manhã”. Não admira, pois, que nesta querela em volta da composição do CSMP, o grande argumento in terrorem dos defensores da actual composição corporativa do Conselho seja o de saírem por aí a gritar aos quatro ventos e às redes sociais que “os políticos” querem travar o combate à corrupção e controlar o Ministério Público. E, então, os políticos fogem e a imprensa dobra-se.

E quando isso sucede, quando um contrapoder se demite de vigiar outro poder, este fica sozinho em praça e dita as regras do jogo. O final nunca é feliz: lembrem-se de Baltazar Garzón ou de Sérgio Moro e de todos os que se acham justiceiros. Sem freio, começam por sacrificar o Estado de direito, as liberdades e garantias individuais, para o que juram ser apenas o combate à corrupção. E, podendo, acabam por sacrificar a democracia para “moralizar” a política. Com o apoio popular, pois claro. Mas não, não há fadas boas.


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Sem comentários:

Enviar um comentário