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sábado, 15 de dezembro de 2018

Uma greve estranha

  por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 15/12/2018)

Daniel

Daniel Oliveira

As reivindicações dos enfermeiros parecem-me justíssimas. Além do subfinanciamento crónico do SNS com efeitos dramáticos no trabalho quotidiano, da consagração da categoria de enfermeiro especialista, do descongelamento da progressão nas carreiras e de outras questões ligadas à estruturação da carreira, o facto de os enfermeiros serem há tantos anos os licenciados mais maltratados pelo Estado torna a sua revolta compreensível.

A estranheza vem depois. A greve dos enfermeiros acontece apenas nos blocos operatórios. Não é novo nem criticável. Muitos sindicatos concentrarem as paralisações em serviços que têm efeitos mais profundos. Mas devem fazê-lo com cautela. Para uma greve ser justa tem de haver uma relação entre a adesão real e os prejuízos que provoca. Os trabalhadores em greve estão a receber. Também não é novo nem criticável. Acontece com os estivadores, que têm o mesmo fundo de greve que existe na generalidade dos países com sindicalismo mais maduro. Mas os enfermeiros não são remunerados por um fundo de greve, com regras claras e que resulta de anos de trabalho de um sindicato. São remunerados através de crowdfunding. Dirão: é outra forma de fazer o mesmo, já que um conjunto dos enfermeiros se cotizou para isto. Só que a plataforma usada para esta recolha de fundos permite o anonimato dos doadores. O dinheiro pode não vir apenas de enfermeiros. Especulando, para se perceber o risco, poderia vir de quem sirva os interesses privados que mais ganham com esta greve. Não digo que seja o caso, digo que o perigoso precedente de podermos ter financiamento anónimo de greves por concorrentes de empresas ou instituições está aberto. Os enfermeiros não inventaram a roda que permite apenas alguns fazerem greve e sem prejuízo financeiro. Apenas seguiram um atalho que, se vier a ser explorado, pode pôr em perigo o direito à greve. Com um pormenor: os 42 euros pagos por dia a estes grevistas não estão sujeitos a impostos ou descontos.

Depois há a origem da greve. Não é os sindicatos que a marcam serem próximos do PSD. Há muitos sindicatos próximos de partidos e isso nunca foi problema. Não é o descarado envolvimentos (ou direção) da bastonária, também do PSD, numa luta sindical, violando a delegação de funções do Estado na Ordem. É estes dois pequenos sindicatos (ASPE e Sindepor) terem sido fundados há apenas um ano e limitarem-se a entregar pré-avisos de greve em resposta às exigências de um movimento inorgânico que é presa fácil de oportunismos, aproveitando o desespero dos enfermeiros. Não é por acaso que, apesar de terem as mesmas reivindicações, o maior sindicato da classe (SEP) e a Federação que junta outros dois sindicatos (FENSE) não participam nesta greve. Estão em negociação e têm consciência que a perda de vidas por causa de uma greve continuada às cirurgias teria repercussões dramáticas para a imagem do sindicalismo e para a credibilidade SNS.

Esta greve, liderada por movimentos inorgânicos com sindicatos feitos ‘na hora’, abre a porta para a destruição de estruturas sindicais sólidas. Com passado, futuro e códigos de conduta. Que sobrevivam às indignações de cada momento, por justas que sejam (e são). Nada disto retira a legitimidade à luta dos enfermeiros, que já é antiga. O problema é como ficarão o sindicalismo e o SNS depois desta perigosa aventura.

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