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sábado, 19 de janeiro de 2019

Se todos querem que dê desgraça, assim será

  por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 19/01/2019)

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O desastre do ‘Brexit’ não estava escrito nas estrelas, é antes o resultado de uma meticulosa construção em que nada foi deixado ao acaso. Começou pela intriga partidária, Cameron queria arrumar o Partido Conservador e prometeu o que não tencionava cumprir, até que uma inopinada maioria eleitoral o obrigou ao referendo. Aí chegado, pediu à Comissão Europeia a facilidade de incumprir normas dos tratados para mostrar músculo contra os imigrantes europeus e levou o que queria. Armado de demagogia contra a ameaça da vinda de trabalhadores, chegou à noite da contagem dos votos confortado pelas sondagens, mas amanheceu derrotado. E foi então que a intriga se adensou.

VINGANÇA

Demitido Cameron, chegou May e a sua história conta-se em poucas palavras: foi a eleições para se reforçar e acabou minoritária e pendurada numa aliança com os unionistas irlandeses, e com um Labour renascido com Corbyn, um crítico das políticas liberais europeias que não lhe facilita a vida. A partir daí, foi uma penosa negociação em que a diplomacia britânica, tida como profissional, se afundou e descobriu que ninguém lhe dava a mão. May foi humilhada e despachada para fora da sala, ficando a saber o que é o bullying em versão bruxelense. A lição é esta: com a Suíça, com a Noruega, até com a Irlanda depois do seu referendo, com o Canadá, a negociação é para um acordo, com o Reino Unido é uma punição.

Há duas razões para a violência negocial das autoridades europeias. A mais óbvia é que, sendo o primeiro país a abandonar a União, e logo uma das maiores economias, não pode ficar a menor dúvida de que a penalização é tal que nenhum outro Estado se pode atrever a imitá-lo. Não é um vacina, é uma chacina. Os governos alemão e francês usam as suas listas de empresas que devem ser abordadas para retirar os centros de operações, há pressão sobre a finança porque a City é a presa mais cobiçada, é uma caçada. A segunda razão é de ordem geoestratégica. A Alemanha e a França sabem que o poder militar britânico, ainda hoje o mais importante na Europa, foi o que determinou o desfecho de guerras e arbitrou desse modo a política continental. A sua destituição histórica é uma vingança duradoura. Paris e Berlim entreveem no ‘Brexit’ uma oportunidade de realinhamento político e, a prazo, das capacidades militares, o que evidentemente revaloriza a França e lhe dá algum sentido no preciso momento em que se esvai a presidência Macron.

ALINHAMENTO

Para o Reino Unido, a gestão do caso por May, atarantada pela acidez europeia que não tinha antecipado, criou uma armadilha de que sairá sempre perdedora. Esmagada na votação dos Comuns, ela já não pode conduzir processo algum. Tornou-se especialista em perder tempo, como se o drama do calendário gerasse cedências de um lado e razoabilidade do outro, mas enganou-se em tudo. Chegou-se assim à pior das escolhas, aquela em que todos os caminhos são péssimos: ou uma renúncia à soberania britânica vergando-se à suprema vergonha de repetir um referendo por ordem externa, o que nenhum grande Estado europeu jamais aceitou, a começar pela França quando recusou em voto popular nada menos do que a Constituição Europeia, ou um ‘Brexit’ em modo de pânico.

O meticuloso trabalho de May e de Juncker, ou de Macron e de Merkel, deu portanto frutos. Quiseram o desastre e chegaram ao desastre. E tal desastre tem duas consequências quanto ao alinhamento de forças e de opiniões. A primeira é que nenhum país se atreverá doravante a usar o Artigo 50º. Mas isso levará quem quiser sair a uma única opção, tentar impor uma crise geral da UE. É aliás mais fácil chegar ao objetivo por essa via do que pela negociação ponderada. Não é difícil adivinhar os candidatos a essa operação, sobretudo depois das próximas eleições. A segunda é que para uma crise de dimensão europeia, ou até para alinhavar a resposta a uma recessão, este rolo compressor contra o Reino Unido provocou um confortável alinhamento dos euroentusiastas, mas perdem o distanciamento crítico de que necessitam para perceber a farsa que estão a montar. Ter um inimigo externo é tranquilizante. Mas é facto que o quadro orçamental plurianual devia estar aprovado antes de a extrema-direita marcar o Parlamento Europeu e que a União Bancária ia ser “completada”, que nada disso aconteceu nem vai acontecer. Pois é, um projeto falhado não sai do pântano puxando pelos seus próprios cabelos, ao contrário do barão de Munchausen.


Acabar com as propinas é para os ricos?

Foi muito desagradável e isto não se faz. Gente de boas famílias ficou chocada e não estava preparada para a ofensa. Por isso, como compreendo a indignação de tantas plumas que se atiraram ao atrevimento, até ao topete do Presidente e do Governo, quando estes, que deviam ter juízo, admitiram que, havendo défice de qualificações na pátria amada, até seria boa ideia acabar com as propinas no ensino superior para tentar não perder aquele terço dos estudantes que, concluindo o secundário, arruma os livros.

A surpresa foi de tal ordem que o PSD, magoado, mandou um vice conferenciar com a imprensa para desmascarar Marcelo, pecador que mudou de opinião em décadas, como é que um dos nossos, esperava-se melhor, ele até é professor e tal. É claro que nem toda a gente se ficou pelo espanto e houve quem exibisse o seu sentido de Estado resolvendo o problema de vez. Os mais serenos vieram lembrar os seus pergaminhos caritativos e insistir na esmola para as famílias coitadinhas, que os meninos prometedores sempre podem ter uma bolsa, há mesmo um em cada vinte que recebe um apoiozinho. Se lhes lembrar que uma família em que os pais têm o salário médio fica de fora dessa misericórdia universitária e pagará meses de ordenado pelas propinas dos filhos, os prudentes reformadores logo enfunarão pelas residências, a questão está nas residências, quartinhos é do que a mocidade precisa. É claro que nem lhes ocorre mexer um só dedo, muito menos um euro, pelas ditas cujas residências. Se não for residências seja um crédito, olhem que nos Estados Unidos é um mercado interessante para os bancos, os jovens a pagarem aos cinquenta anos a sua dívida universitária.

Mas o argumento mais saboroso é a pulsação de justiça social dos nossos propinistas. Eles querem que os ricos não levem o ensino de borla. Baixar as propinas é dar dinheiro aos ricos, dizem-nos, zangados. Claro que a conta é mais complicada e se, com a democracia, o ensino superior passou de 40 mil estudantes para quase 400 mil, a descrição desta multidão como “ricos” é estranha.

É ainda bizarra, porque sugere um critério que ninguém leva a sério: um custo (como as taxas “moderadoras” na saúde, ou as propinas) é imposto por forma a restringir a procura, e será que se pretende que haja menos ou mais estudantes no superior? Ou, se os estudantes devem financiar o ensino pós-obrigatório, porque é que não propuseram o secundário pago quando só a quarta classe era de lei? Nada no argumento dos propinistas faz sentido.

Por isso, foi preciso mobilizar algum diretor de jornal com pedigree e os comentadores de grande gabarito para a missa por alma das propinas, o que diz algo sobre a delicadeza da questão. Numa distinta coleção, os ex-ministros foram também convocados para explicar que, tendo aumentado as propinas de 6 euros para mais de mil, se indignam se alguém as quer reduzir, uma opinião que só pode ser reverenciada. Um deles, Crato, escreve seraficamente que a propina, que dispensa os pobres, mantém a qualidade do ensino.

O certo é que, até agora, tudo estava a correr bem. A Constituição fixara-se, depois de alguns ajustes, na garantia de que o ensino superior público é “tendencialmente gratuito”, o que é interpretado como a seta de Zenão, avançando sem nunca chegar ao alvo, ou, com alguma ginástica imaginativa neste imbróglio constitucional, até voltando para trás. Isto convinha a todos: aos reitores, que ficavam com carta branca para tropelias nas propinas de mestrados e doutoramentos, e ao ensino privado, que assim não era tão mais caro do que o público e manteria o seu mercado. Só não convém às famílias e a quem estuda. E, já agora, ao atraso português.

Por tudo isto, os propinistas fazem um serviço à ditosa pátria. Mostram a cor da política liberalizadora: os estudantes que paguem o ensino, pois é um mercado e não uma necessidade básica, e no meu tempo é que era bom, conhecíamo-nos pelo apelido.

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