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sábado, 23 de março de 2019

Orient Express

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 23/03/2019)

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1 Dubai, 2h30 da manhã, hora local. Acabado de chegar de Lisboa, janto uma club sandwich no terraço do hotel, com uma vista frontal para a Burj’ Khalifa, o tal edifício habitacional mais alto do mundo. É uma notícia falsa, um recorde sem sentido: os últimos vinte ou trinta andares da torre não devem ter mais de 20 metros quadrados, e acima deles, um longo estilete, o suficiente para atingir a altura que satisfaça a ambição guinnessiana do califa. Uma longa, impressionante e lindíssima fileira de arranha-céus ilumina o horizonte em frente ao terraço do hotel, separada deste por um lago artificial, como quase tudo o resto nesta cidade-estado. Um mar de luzes reflectidas na água, Manhattan sobre a areia. O homem delira, um exército de escravos asiáticos, como os que outrora ergueram as pirâmides dos faraós, constrói, a obra nasce. Mas é preciso ver para crer.

Nove da manhã: há qualquer coisa do mundo do Tintim aqui neste país meio delirante. E há sempre qualquer coisa de Oliveira da Figueira em cada português em tais lugares: começando em 250 euros por hora, acabo a contratar por 100 euros um dia inteiro (seis horas, a terminar no aeroporto), o serviço de um táxi para me mostrar o Dubai. Ao pequeno-almoço, empregados filipinos; ao volante do táxi, um paquistanês; nas obras (e há obras por todos os lados) indianos e negros de várias Áfricas. A cidade é um delírio de arquitectura, por vezes irracional, por vezes deslumbrante. Desafiando as leis da física, os edifícios têm formas de aves, de aviões, de naves espaciais, de navios, de arcos torcidos ou retorcidos, de harpas ou violinos. Canteiros de flores enxameiam todos os passeios e todos os cantos das largas avenidas, a sinalização bilingue é impecável, os semáforos são de uma absoluta eficácia, não há um buraco nem o mínimo desnível no alcatrão. E não há um papel no chão. Será a cidade perfeita? Enfim, há um souk, na parte velha da cidade, encostada ao rio, onde desembarcam os turistas nas imitações dos antigos dhows. Numa loja de irmãos afegãos comprei um carregamento de chás, açafrão e caril, cheirando sumptuosamente e que haveriam de durar para um ano inteiro não me viesse a esquecer deles no táxi, no aeroporto. Mas, graças a uma recomendação de um português aqui residente, vou almoçar a um restaurante local, com turistas, é certo, mas verdadeira comida árabe, num pátio sob uma parreira... de falsas videiras (há milagres que nem o dinheiro consegue). Comi um fabuloso arroz com borrego e pimentos, que me fez lembrar o plov, o prato tradicional do Azerbaijão, uma das minhas comidas preferidas entre todas as que já provei por aí. Breve visita ao museu da cidade — que não tem nada para mostrar senão tendas, que era o que aqui havia dantes — e apanho um voo nocturno para Hong Kong.

2 Seis da manhã em Hong Kong. Ainda não há jet-foil para Macau e tenho de apanhar um autocarro atravessando a maior ponte do mundo: Hong Kong-Macau, 46 quilómetros, dos quais 14 em túnel submerso, mas só transitável por transportes públicos ou veículos com autorização especial. Ou seja: vazia. Aqui, o dinheiro, simplesmente, não é problema. O Governo de Macau tem um superavit anual de 60 mil milhões de euros, que, por ora, deixa ficar na chamada Região Administrativa Especial. Cerca de 95% da receita vem do jogo, das quatro majors americanas que vieram de Las Vegas para aqui (onde facturam três vezes mais, explorando até ao tutano o demencial vício de jogo dos chineses). As receitas do jogo são taxadas entre 35 e 45% e, em contrapartida, os residentes de Macau têm uma vida fiscal de sonho: 12% é o máximo de IRC para as empresas e 8% o máximo de IRS para as pessoas singulares; IVA não existe e todos os anos os residentes em Macau recebem, cada um e por igual, um cheque de 1000 euros do Governo — uma espécie de presente de Natal. Além disso (os portugueses que o digam), existe a Fundação Macau — que financia ou comparticipa de todas as actividades das organizações civis, como o Festival Literário de Macau ou o Grande Prémio de Macau, e é responsável por manter activos três jornais diários, uma rádio e uma televisão em língua portuguesa para uma colónia de cinco a seis mil falantes de português. São, no total, cerca de 80 jornalistas portugueses, com uma qualidade verdadeiramente surpreendente, muito acima do que por cá se vê habitualmente, e gozando de uma liberdade para criticar o Governo como, segundo eles, nunca tiveram nos tempos do último governo português, de Rocha Vieira, quando os telefonemas e os recados do “palácio” para as redacções eram prática estabelecida. Estamos sempre a aprender com os chineses, até o que não se esperava...

Dantes, estes dois mundos seriam conciliáveis, agora já não. Destinados a expandir-se, os chineses vão engolir-nos

Do velho Macau português, passado de mãos há vinte anos, resta tudo o que não foi engolido por uma construção galopante, parte da qual em terrenos arrancados à água, como a nova ilha de Cotai, entre Coloane e Taipa, onde se erguem os monstruosos edifícios dos casinos, como o assustador Galaxy, que parece obra de Donald Trump. Mas também, esmagado entre os demais, o deslumbrante novo hotel Morphews, obra póstuma da iraquiana Zaha Hadid. Dos 12 quilómetros quadrados do tempo dos portugueses, Macau vai hoje em 36 quilómetros quadrados!

No restaurado Clube Militar, os portugueses, em particular os 150 advogados lusos que aqui proliferam, encontram-se todos os dias ao almoço para comer o inevitável bacalhau ou a carne de porco à alentejana, assim como aos domingos vão ao Miramar comer o cosido ou ao Fernando comer sardinhas. Não temos emenda e felizmente: são os sinais do império ou o que lhes queiram chamar. É a nossa maneira de estar e ter estado no mundo: fomos, mas levámos os sinais de casa connosco. E por lá ficaram, mais as igrejas, as casas e os filhos que fizemos. E isso nos distingue dos outros e nos faz lembrados.

3 A fachada de mar podia parecer Manhattan, se Manhattan fosse imitável, que não é. As traseiras podiam parecer as traseiras de Copacabana, se se ouvisse o mar e a alegria, mas não se ouve. Hong Kong talvez seja um misto de Copacabana dos ricos com Manhattan dos pobres, mas o mar não é mar, é um esgoto de rio desaguando num oceano tão poluído que nem as gaivotas aqui se avistam. Entalado entre as montanhas e a água, o arquipélago escala os céus em edifícios literalmente encostados uns aos outros, tentando abrigar os milhões de desaguantes desta florescente praça financeira do Oriente. Mas, mesmo assim, não chega: no mítico “South China Morning Post” (nós deixamos igrejas e comidas, os ingleses deixaram a tradição de um grande jornalismo), leio que o governo desta outra Região Administrativa Especial vai lançar mãos do projecto “Lantau Tomorrow Vision”: “reclamar” ao mar, como eles dizem — isto é, aterrar — mais mil hectares de terra, para erguer do nada uma nova ilha onde construirão 260 mil apartamentos para um milhão de pessoas, na sua maioria funcionários públicos. Custo: 64 mil milhões de euros, cerca de metade das reservas actuais de Hong Kong. Enquanto isso não acontece, Hong Kong, como Macau, mantém-se com a maior densidade populacional do mundo. Vista de cima, de um 17º andar, a cidade é um formigueiro que circula sem parar em todas as direcções, como o inferno deve ser. Vista ao nível da rua, é uma demência que assusta: dez em cada dez chineses, parados ou em andamento, estão agarrados ao telemóvel — é uma extensão do corpo, da cabeça, do espírito deles. Muitos são chineses do continente que vêm ver como vivem os primos ricos de Hong Kong. Distinguem-se destes por evidentes sinais exteriores: elas, sobretudo, porque já não concorrem com a família real inglesa e com a família Aveiro, da Madeira, para o 1º lugar entre as mulheres mais mal vestidas do mundo. Há também muitos ocidentais, leftovers de Sua Majestade Britânica, ou recém-chegados, farejando o big, big money, impecáveis nos seus fatos escuros Armani. Mas a todo o tempo se cruzam dois mundos, que se diria inconciliáveis, mas que, à boa maneira chinesa, não são: acima da Queen’s Road, com as suas luxuosas lojas de marcas da Europa e de Nova Iorque, a estreita Stanley Street desemboca num mercado chinês de frutas e verduras ao ar livre, onde, sentados em toscas mesas, pequenos grupos comem o porco frito, o pato espalmado e assado e as inevitáveis sopas em tigelas. E um velho coolie, dobrado como um arco pelos anos e pelo peso da carroça que empurra ladeira acima, desemboca na esquina de Stanley Street e detém-se para deixar passar um Rolls Royce de vidros fumados com um jovem chinês ao volante: “um país, dois sistemas”.

4 Esta sexta-feira, estarei a sobrevoar a Ásia toda, o trajecto da Rota da Seda, através do qual Xi Jinping sonha conquistar o mundo. Depois, sobrevoarei a Itália, cujos portos, Génova e Trieste, ele vai comprar ao Governo de extrema-direita italiano, fechando assim o seu projecto e garantindo uma porta de entrada essencial na Europa. A vingança sobre Marco Polo. Vou sentir-me a fugir. A fugir de um sufoco, a fugir para onde está o meu mundo: o da luz, do espaço, do silêncio. Onde está o Mediterrâneo. Sinto-me a fugir, mas sei que é inútil: eles vêm aí.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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