por estatuadesal
(António Guerreiro, in Público, 14/04/2019)
Saber que o empresário Joe Berardo deve quase mil milhões de euros à bancafaz-nos soltar um riso amargo quando, à entrada do Centro Cultural de Belém, somos esperados por grandes painéis a indicar que estamos a entrar no condomínio de luxo parcialmente ocupado pelo Museu — Colecção Berardo. A dívidas sumptuárias correspondem residências sumptuárias.
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A primeira residência do inquilino do CCB foi em Sintra, num Museu de Arte Moderna criado para o efeito, num edifício com alguma história e dimensão, mas que proporcionalmente à grandeza do ocupante era uma espécie de T2 na linha de Sintra. Dessa inauguração, em 1997, poderíamos dizer o que Marx disse, ao assistir à abertura da Exposição Universal de Londres, em 1851: “O povo acorreu para ver as mercadorias”. E é bem verdade que a arte, na visão marxista, representa a mercadoria por excelência: puro valor de troca e zero valor de uso. O povo que se deslocou a Sintra era toda a arraia-miúda e grossa das artes, em Portugal (e algumas espécies estrangeiras para fazer uma caldeirada cosmopolita), e gente vária e numerosa do campo artístico e cultural (para não me armar em snob, devo dizer que também lá estive, na condição de jaquinzinho). Berardo, pouco dado à fina eloquência, não se lembrou de dizer que estava a oferecer um presente a Sintra e a todos os portugueses; essas palavras ao estilo dos nobres mecenas do nosso tempo, que circulam entre a arte contemporânea e a indústria do luxo, foram proferidas por Bernard Arnault, o director executivo do grupo LVMH, quando inaugurou no Bois de Boulogne, em 2014, o museu da Fundação Louis Vuitton: “É um presente a Paris e à França” (e nesta noção de presente, cadeau, joga-se uma diferença essencial com a ideia de dom que informou, durante séculos, a actividade mecenática). Joe Berardo, muito longe do requinte destes novos príncipes, não o disse explicitamente, mas estava subentendido. E não precisava porque havia muita gente a dizê-lo por ele.
Sabemos agora, passados mais de 20 anos, que foram os portugueses, entretanto, que emprestaram cerca de mil milhões de euros (cem euros, cada português) ao empresário. Muitíssimo mais do que vale a colecção, quando for convertido o seu valor simbólico em valor real. Sabendo tudo isto, conhecendo bem a história, entramos no Museu — Colecção Berardo e o que vemos, obstinadamente, não é arte, mas activos financeiros. E activos financeiros dos quais somos investidores involuntários. Vemos então, em exposição, uma parafernália financeira, à espera de ser convertida em dinheiro para pagar dívidas ou iludir os credores que, apesar do nome, não crêem naquilo que jamais entenderão. E se entendessem exprimiriam certamente uma enorme impaciência perante as manobras deste coleccionador que quis, à escala portuguesa, ser o representante de uma plutocracia mundial que faz da arte contemporânea um laboratório de formas de criação de valor. Num momento em que o devir especulativo estava acelerado, aquela colecção exibia a solidariedade que a arte estabelece com o dinheiro e o “novo capitalismo”. Ao contrário das trocas comerciais tradicionais — em relação às quais as obras de arte ocupavam um lugar marginal, inscrevendo-se num regime particular do valor —, as economias neo-liberais integraram a arte nos mecanismos do mercado como um factor de investimento e especulação, uma das principais formas de investimento e de mais-valia, de circulação do dinheiro e de valores-refúgio. Mas a colecção mostrou também, nas suas andanças expositivas, que até uns restos de discursos sobre a autonomia artística não passam de uma tagarelice que não pode ser levada a sério. Joe Berardo foi o supremo representante do empresário que não empreende nada, instalado na financiarização da economia. A operação CCB/Colecção Berardo inscreveu-se numa lógica de valorizar a capitalização da totalidade da colecção.
A conclusão última — e escandalosamente política — desta triste história é que é possível encontrar no mundo da arte, onde menos se esperava, aquela oposição entre o capital e o trabalho que Marx definiu e analisou. De tal modo que, na sociologia do campo artístico, se inventou um mot-valise para designar esta nova figura a que corresponde a maior parte dos artistas: o prolartariado.
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