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sábado, 13 de abril de 2019

Caderno de encargos

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 13/04/2019)

Miguel Sousa Tavares

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1 A ema é um animal com pernas compridas, cintura larga e um longo pescoço que segura uma pequena cabeça eternamente oscilante para os lados. Em terreno aberto, a ema parece estar sempre a correr sem saber bem para onde vai ou porque corre. Tudo na ema, quer morfologicamente quer em termos de comportamento, me faz lembrar a primeira-ministra inglesa, Theresa May. Temos aqui alguém que costuma ser classificada como uma pessoa com uma notável capacidade de resistência — o que é uma maneira simpática de dizer que tem uma notável capacidade de apego ao poder, em nome de coisa alguma. Porque ela corre sem parar, entre Bruxelas, Berlim e Paris, sempre com o mesmo papel na mão, a que acrescenta uma vírgula ou retira um parágrafo, mas sem saber ao que vai e em nome de quê porque afinal de contas “brexit means brexit” não passava de um slogan para enganar internamente os ignorantes e os grandiloquentes, ao mesmo tempo que desespera porque a maldita Europa não aceita um ‘Brexit’ em que a Grã-Bretanha larga o que não lhe interessa e conserva o que lhe convém. E ela, que em nome do poder, aceitou um mandato para defender o contrário do que antes defendera — a manutenção da Grã-Bretanha na UE — vive há dois anos o calvário justamente destinado aos políticos sem convicções, prorrogando sucessivamente os prazos prometidos na esperança inútil de que do outro lado abram uma brecha de misericórdia em nome da grandeza da Inglaterra. Diga-se que a grandeza da Inglaterra faz falta à Europa, hoje e amanhã. Mas o que não faz falta nenhuma à grandeza da Inglaterra é esta desgraçada geração de políticos ingleses actuais, de Corbyn a Farage, passando por Theresa May.

2 No outro extremo da Europa, onde o Oriente começa, Netanyahu, como era de prever, sacou um quinto mandato para continuar a destruir paulatinamente o sonho sionista de um Israel democrático e compreensivo. Hoje em dia, em qualquer lugar onde se confrontam alternativas, a regra é esperar sempre o pior dos cenários possíveis. E Netanyahu traz consigo o pior cenário possível para Israel. Depois de Trump ter anexado os Montes Golã em nome do Estado de Israel, Bibi, como última promessa de campanha, prometeu fazer o mesmo com os territórios da Cisjordânia onde foram implantados colonatos judaicos, reconhecidamente ilegais por toda a comunidade internacional, com excepção de Trump e Bolsonaro — os novos amigos de Israel, agenciados por Bibi. Além do atropelo, mais um, à lei internacional e às Resoluções da ONU, essa nova anexação significa o fim definitivo do princípio dos dois Estados — um judeu e outro palestiniano — em que assentam quaisquer esboços de um tratado de paz. Ficará assim um só Estado — o Estado judaico, mas onde em breve a população árabe será superior à judaica. Como não se está a ver a coligação de extremistas de direita ortodoxa que suporta Netanyahu a aceitar isso, muitos antevêem que esse futuro Estado único judaico se venha a transformar inevitavelmente no segundo país onde historicamente vigorará o apartheid, com a nacionalidade plena a ser reconhecida apenas a judeus. Mas há outra possibilidade que não está a ser considerada, que é a de Bibi e o seu bando não se limitarem a anexar as terras dos palestinianos na Cisjordânia, mas também a expulsarem-nos de lá para fora. A única força que os poderá travar são os juízes que ainda queiram defender Israel como um Estado de direito. Mas justamente está pendente para apreciação no Knesset um projecto de lei que prevê a destituição dos juízes do Supremo Tribunal por simples maioria parlamentar. Durante muito tempo acreditámos que as democracias só podiam ser destruídas pela força, por golpe vindo de fora. Mas agora estamos a aprender que também podem se destruídas por dentro, por voto popular.

3 Outras eleições, as europeias, onde tradicionalmente se trata de quase tudo menos da Europa. Três exemplos individuais. Marinho e Pinto: o que faz recandidatar-se alguém que disse cobras e lagartos dos deputados europeus, que os acusou de absoluta inutilidade e de obscena remuneração? Só pode ser mesmo a obscena remuneração. Creio, sem grande receio de me enganar, que terá nas urnas a adequada resposta dos eleitores. André Ventura: segundo percebo, a sua agenda politica limita-se a reclamar a prisão perpétua (antes era a pena de morte) para os “monstros” e o direito a não sustentarmos quem não quer trabalhar (suponho que se refira ao RSI). Independentemente da profundidade que este pensamento político revela, trata-se de uma agenda exclusivamente de política interna e protagonizada por quem, aliás, se estreia na política e, ao que parece, com veleidades de vir a ser o nosso populista de serviço. A pergunta que se impõe então é: porque quer este tipo ir para Bruxelas? Vai lá defender o fim do RSI para os nossos ciganos, a prisão perpetua no Código Penal português, ou espera ir tratar da vidinha e chega? Terceiro caso, o de Nuno Melo, do CDS. Pelo que ouvi, a sua agenda eleitoral limita-se à discussão sobre o projecto de um imposto europeu sobre as multinacionais, um tema tão complexo que dificilmente atrairá a atenção de meia dúzia de eleitores. Resta então o seu slogan de campanha, repetido numa profusão de cartazes espalhados pelo país, acompanhando a cara do candidato: “A Europa é aqui”. Extraordinária declaração esta: a Europa é aqui! O que será que isto quer dizer? Se a Europa é aqui, para que serve a UE, para que servem as eleições europeias? Melhor ainda: se a Europa é aqui, porque quer Nuno Melo ir para a Europa? Porque não se deixa ficar por aqui?

Durante muito tempo acreditámos que as democracias só podiam ser destruídas pela força, por golpe vindo de fora. Mas agora estamos a aprender que também podem ser destruídas por dentro, por voto popular

4 Mais eleições, desta vez as legislativas. Tão discretamente quanto possível, o Conselho de Ministros aprovou a reposição das progressões nos regimes especiais da função pública. Além dos professores, são também contemplados magistrados, militares, polícias, diplomatas, etc.: 246 milhões por ano a mais de despesa fixa. Já se sabe que os professores não se dão por satisfeitos com as contas do Governo e querem cerca de quatro vezes mais. Vão tentá-lo por via legislativa na AR e, não o conseguindo, por via judicial. Se o conseguirem (e sendo por via judicial, os juízes serão parte interessada na decisão), ela terá necessariamente de ser estendida aos restantes. Aí será preciso multiplicar por quatro os 246 milhões. Chamem-lhes danos colaterais eleitorais.

5 Tudo isto é pago pelos contribuintes, que são muito dóceis e não reclamam nem se manifestam nem podem fazer greve. Mas os contribuintes franceses reclamam: reclamam das benesses fiscais que os seus cidadãos gozam em Portugal graças ao estatuto de residente não habitual. Como o de receberem as pensões em França e pagarem 0% de IRS sobre elas em Portugal. Se assim é, dizem eles — os que moram em França — então que seja Portugal a pagar-lhes as pensões. Mas, além dos reformados franceses, há muitos estrangeiros de outras nacionalidades que beneficiam de outros regimes fiscais de excepção que não estão ao alcance dos portugueses. Costumamos dizer que em Portugal não há portugueses de primeira e portugueses de segunda. Mas há estrangeiros de primeira e portugueses de segunda. Dizem que é para atrair investimento essencial ao país. Muito bem: e porque não dão as mesmas condições aos portugueses para investirem no seu próprio país?


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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