por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 05/04/2019)
Daniel Oliveira
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Gosto de disciplina na análise e acho que a função de quem comenta a atualidade não é contribuir para nebulosas onde perceção da realidade se confunde com a realidade. No caso dos familiares do PS, tudo tem aparecido junto. Coisas que, tirando haver parentes e serem do PS, nada têm a ver umas com as outras. Podemos fazer análises éticas e elas exigem que cada caso valha por si. O que quer dizer que não existe nada de criticável na chegada de Mariana Vieira da Silva da ministra, e que o caso do adjunto que é primo do secretário de Estado do Ambiente que o nomeou é um caso clássico de nepotismo que só poderia levar, como levou, à demissão do governante.
Podemos fazer uma análise ética do “famíliagate” (até às eleições não vai haver nome para tanto caso). Para isso, estamos obrigados a ver caso a caso, porque as ponderações que temos de fazer com cada um deles são diferentes. Também podemos fazer uma análise política do conjunto deles. Uns insistirão no ineditismo deste governo, concentrando-se assim na especificidade do PS. É com base nisso que fazem os retratos que têm feito da “família socialista”. Outros têm memória e sabem que isso não é verdade. Bastou Cavaco Silva ter saído da toca e logo se foi verificar como num governo existiam 15 mulheres de ministros e secretários de Estado em gabinetes ministeriais. Com esta amostra, se se tivesse ido até aos primos teríamos seguramente números esmagadores. Se assim é, o problema é sistémico e é assim que deve ser analisado.
Partindo desta convicção, tive uma troca de mensagens com um amigo que me ajudou a pensar um pouco mais no assunto. Preocupado com a situação, enviou-me há uns dias uma citação de um artigo em que se dizia que estas pessoas do PS andaram nos mesmos liceus e frequentam os mesmos restaurantes. Ele discordava da partidarite cega, que todas as autarquias e o passado desmentem. Mas concordava com esta afirmação aplicada à política e ao país. Respondi que tinha razão.
Sem maldade, recordei-lhe que os seus filhos estão num colégio privado bastante bom, muito do gosto da esquerda intelectual lisboeta – também poderia ser o São João de Brito, os Salesianos ou Saint Julian's, fosse outra a tribo. Ou seja, os seus filhos já estavam na bolha que lhes facilitaria o acesso ao poder. Quando forem mais velhos terão estudado na mesma escola e provavelmente irão aos mesmos restaurantes que toda a nova elite. Conheço os miúdos e são muito inteligentes. A escola ajudará mais um pouco. E a boa rede de contactos dar-lhes-á, sem qualquer cunha, acesso a bons empregos. Porque eles serão as pessoas competentes que conhecem as pessoas certas. Melhor do que um miúdo inteligente da escola secundária de Nisa.
Ansioso e revoltado com o que considera ser um dos maiores problemas deste país (o meu amigo não vem da bolha onde já estão os seus filhos), e suficientemente ingénuo para achar que alguém quer fazer mais do que guerrilha eleitoral com este tema, o meu amigo acha que devemos aproveitar esta polémica para debater a endogamia em Portugal. Talvez se deva fazer mudanças legislativas, coisa em que passou esta semana a ser acompanhado por uma legião de seguidores que rapidamente se começam a aperceber da dificuldade da coisa. Devo dizer que torço o nariz sempre que se enfrenta com leis o que é um problema estrutural. Até porque raramente pensamos nos problemas que elas criam.
Fizemos imensas leis para evitar a corrupção, que todos aplaudiram. E depois queixamo-nos de um Estado lento que se perde anos em labirintos burocráticos antes de conseguir fazer alguma coisa. Vamos acumulando incompatibilidades para os políticos, que todos aplaudem. E depois queixamo-nos que os melhores não querem estar na política. Estou curioso em ver a proposta de Marcelo Rebelo de Sousa de alargar as regras hoje existentes, sobre familiares na Administração Pública, aos primos a ser aplicada em municípios de cinco mil eleitores. Todas as nossas boas intenções têm um preço.
Sou mais radical no diagnóstico: acredito que a endogamia evidente em todos os círculos de poder, dentro e fora do Estado, resulta de uma elite pequena e de uma sociedade desigual. E que a melhor forma de a combater é uma excelente escola pública onde todos ponham os seus filhos, universidades democráticas que sejam o oposto da escola elitista que alguns dos mais indignados deste momento sempre defenderam, políticas urbanas que contrariem a lógica do mercado e permitam que classes se misturem, transportes públicos magníficos que todos usem e uma distribuição de rendimentos mais justa.
Como se vê pelas dinastias que governam os EUA, o problema não é só pequenez do país, é a desigualdade. A resposta é tornar o poder mais poroso — e isso só se consegue com sociedades menos estratificada.
E chegámos à segunda parte da nossa conversa. A maioria das pessoas que têm acesso ao espaço público é da elite. Escreve textos indignados sobre este assunto e vive ela própria em bolhas em que a endogamia, seja por via familiar ou de amizade, é a regra. Nas universidades, nos escritórios de advogados, nos conselhos de administração, nas companhias de teatro, nas redações de jornais. Todos preferem que este debate se fique pela política (ou mesmo pelo PS). Uns porque tratam os partidos como um cómodo repositório de todos os males da sociedade. Outros porque demonizam o Estado e as suas funções. Outros porque vivem na fantasia de que as redes de conhecimentos, amizade e parentesco não contam imenso no privado, não reparando nos apelidos que se repetem nas administrações. Outros, por fim, porque acham que não devemos aplicar os mesmos critérios éticos ao que tem um dono e ao que é de todos. Os últimos têm razão. Mas o Estado e a política repetem sempre o que acontece fora deles.
O meu amigo acabou a conversa a dizer que o PS tem de abrir as listas para dar um sinal que compreendeu o incómodo geral, mesmo que os partidos que atiram pedras com telhados de vidro não o façam. Concordei. Mas depois estraguei tudo: quando abrirem as listas virá mais gente da mesma pequena elite nacional. Talvez um pouco mais variada e com menos primos, mas das mesmas bolhas que se cruzaram nas mesmas escolas e restaurantes. Concluí que sou mesmo mais radical do que o meu amigo. Ele não quer falar de luta de classes.
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