(Abílio Hernandez, 28/07/2019)
Quantas vezes as nossas insónias são povoadas por personagens dos livros que amamos, figuras que nos acompanham ao longo da vida e se tornam companhias constantes, obsessivas, que nos afetam como se fossem de carne e osso como nós. Umas vezes convocamo-las para tentar obter respostas sobre o que não tem resposta. Outras vezes, são elas que nos visitam sem chamamento prévio e nos interrogam sem cessar.
São os nossos fantasmas da noite.
Todos cumprem os respetivos destinos, nos seus mundos fabulosos. Por isso Electra decide punir um crime com outro crime e empurra contra o peito de Clitmenestra o punhal que o irmão, Orestes, segura de olhos tapados e mãos trementes. Por isso Édipo, preso na armadilha dos deuses, pressente a verdade abominável e, na esperança de estar enganado (mas haverá nele alguma esperança?), persegue obstinadamente essa verdade. Por isso Lear, traído por quem se julgava mais amado, vagueia em plena tempestade na tentativa de descobrir em si mesmo a capacidade de aceder a uma compreensão real da natureza humana.
Recipientes de palavras carregadas de mundos, é o que somos. Palavras que souberam encontrar-nos e moldar-nos com paciência infinita, deixando marcas indeléveis na memória da nossa pele. Porque há livros que, como algumas cidades, são feitos à medida do nosso corpo, sem que antes seja possível adivinhá-lo, mas que descobrimos, fascinados, no ato sempre incompleto da leitura. Como em Hiroshima, quando a mulher diz ao amante fugaz: “Comment me serais-je doutée que cette ville était faite à la taille de l’amour? Comment me serais-je doutée que tu étais fait à la taille de mon corps même?”
Como Stephen Dedalus, na areia de Sandymount, leio nos livros as assinaturas de todas as coisas. Como ele, fecho os olhos e vejo o mundo que está ali desde sempre, sem mim, para toda a eternidade. “Ineluctable modality of the visible”.
Como ele, fecho os olhos e vejo que Dedalus é afinal Jorge Luís Borges naquela fotografia em que olha (para onde?) como se (não) fosse cego e quisesse ver melhor as palavras que alguém (que eu não vejo) lhe lê de um livro feito de areia...
Chego ao fim da noite, abro o que penso ser último livro, deito-me sobre o lado esquerdo, e leio:
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez
dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma:
partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua
harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa:
o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim,
deslocando todo o peso do sangue sobre a metade
mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.
Mas a insónia persiste e Carlos de Oliveira não era, afinal, o último fantasma da noite. Era preciso que Herberto saísse da sua solidão atenta e solidária e me dissesse, em jeito de despedida:
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
Com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
Os meus fantasmas da noite, todos feitos de palavras como eu, vão-se esbatendo sob a primeira claridade do dia.
Em frente da página luminosa de um livro, nenhuma insónia me fará sentir só.
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