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sábado, 13 de julho de 2019

Nada é preto ou branco

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 13/07/2019)

Miguel Sousa Tavares

Adoramos as oportunidades para nos indignarmos em nome das boas causas. É de borla e fornece-nos uma excelente ocasião para nos exibirmos do lado justo, civilizado, politicamente correcto. Essencial é que haja alguém do lado contrário, alguém que desempenhe o papel do inimigo a exterminar com a nossa barragem de fogo enraivecido e bem intencionado, sem o que nada faria sentido. A historiadora Maria de Fátima Bonifácio pôs-se a jeito para a função, enfiando militantemente a carapuça de racista convicta — o que proporcionou a um exército de sempre atentos cidadãos-exemplares o pretexto para repudiarem, enojados, as ideias da professora Fátima Bonifácio.

A primeira coisa que me ocorre dizer é que é fácil e inodor ser-se anti-racista no Facebook ou no Twitter, proclamá-lo entre amigos ou escrevê-lo em abaixo-assinados. Já conheci várias pessoas que o fazem sem esforço algum, mas que depois só com indisfarçável esforço se comportam na prática, no dia-a-dia e nos contactos humanos como não-racistas. E isso vale para brancos como vale também para negros ou asiáticos ou ciganos: sim, Fátima Bonifácio tem razão quando escreve que também há racistas não brancos — entre si ou para com os brancos — embora não haja comparação, nem física nem intelectual, com o racismo branco para com os outros. O texto dela é, aliás, eloquentemente exemplificativo disto: é um tratado intelectual de justificação do racismo branco e, o que é ainda pior, em nome dos “valores da Cristandade” e da ”civilização cristã”. Esses mesmos valores e essa mesma civilização que invocámos há quinhentos anos para justificar a escravatura. É absolutamente impensável que alguém se possa lembrar de recuperar tal justificação para se desculpar daquilo que não passa de um defeito de carácter.

O racismo é um defeito de carácter e não há forma de o desculpar ou de o tolerar numa sociedade democrática e num Estado de direito. A lei não pode mudar o carácter das pessoas, mas pode e deve estabelecer as linhas vermelhas daquilo que é e não é tolerável na vida em sociedade. E esta é uma linha vermelha.

Tudo o resto das questões levantadas pelo texto de Fátima Bonifácio, ou a propósito dele, já não é tão a preto e branco. A começar pela questão das quotas a favor das minorias étnicas no acesso às universidades, o ponto de partida do texto dela. A questão das quotas — a favor de sexos, de etnias, de religiões — suscita-me muitas dúvidas sobre a sua justiça e ainda mais sobre os seus resultados práticos. Quanto à justiça, porque na sua base está sempre alguém que ascende, não por mérito, mas por decisão política e sobrepondo-se a alguém de mérito superior; quanto aos resultados práticos, porque nada me garante, por exemplo, que uma mulher seja melhor na política que um homem — não é por ser mulher que Merkel se revelou dos melhores, ou dos menos maus, governantes europeus entre a desgraçada geração actual de governantes homens, assim como não é por ser mulher que Theresa May se revelou um desastre como primeira-ministra britânica. Porém a tese de Fátima Bonifácio assenta num contorcionismo extraordinário: ela é a favor das quotas para mulheres que provaram bem; mas não para negros ou ciganos, porque, não fazendo parte da Cristandade, serão seres inferiores. Isto, vindo de uma historiadora é arrepiante. E não é preciso ir aos exemplos extremos da História para medirmos o alcance da perigosidade de qualquer tese assente na superioridade de uma raça, uma etnia, uma religião ou uma civilização sobre as outras: todos os extermínios de povos assentaram nisso.

Contudo, não é menos verdade que nem todos os povos coincidem no grau de desenvolvimento ou naquilo a que chamamos civilização. E nem todos, aliás legitimamente, estão interessados em evoluir para aquilo a que chamamos padrões civilizados. O maior problema de África é o incivismo, a ganância, a corrupção dos seus dirigentes: não por serem negros, mas por ausência de padrões de organização democrática das sociedades. Os ciganos, não vale a pena seremos hipócritas, têm regras de conduta entre si que nós não toleramos nem no Código Civil nem no Código Penal, recusam-se a tratar as mulheres como seres iguais em direitos aos homens, recusam integrar-se no que são os padrões de vida comum em sociedade, mas não abdicam de reivindicar todos e cada um dos direitos e benefícios que o Estado lhes dá. Não podendo ser integrados à força, são um problema, jurídico e social. Nada disto pode ser negado, como fazem os indignados prontos a assinar. Mas também não pode ser generalizado, sob pena de se entrar no campo da discriminação étnica e da defesa assumida do racismo, como faz Fátima Bonifácio.

Estas foram as questões essenciais levantadas pelo seu texto. A mim, em nada me incomodaram elas e ele. Pelo contrário, quanto mais opostas às minhas são as ideias de alguém melhor é a oportunidade para eu testar as minhas e os respectivos fundamentos. Vejo a publicação do texto de Fátima Bonifácio no “Público” como um exercício banal do confronto de ideias num jornal aberto de um país democrático. Uma colaboradora externa publica um texto que toda a gente sabe que não reflecte a linha editorial do jornal e, se calhar até, ofende o seu Estatuto Editorial, mas, qual seria a alternativa — censurá-la? A avaliar pela avalanche de reacções havidas, inclusive do próprio director a declarar-se arrependido da publicação, parece que sim, parece que era isso que tantas consciências ofendidas defendiam. Confesso que isso me choca tanto ou mais que o próprio texto da autora. Queiram ou não — até como se viu pelas reacções contrárias — as ideias de Fátima Bonifácio encontram eco naquilo que muitos outros portugueses pensam, se calhar sem o dizerem abertamente. E, como eu vejo as coisas, em democracia essa gente também tem direito a ter voz e é até melhor que a tenha assim, publicamente, do que andar a votar à socapa no Salazar como o maior português de sempre. Assim, podem expor as suas ideias e serem confrontados e contraditados, de outro modo seriam apenas silenciados, como Salazar fazia com os que dele discordavam.

Na verdade, ver gente a pedir um processo-crime a Fátima Bonifácio (por delito de opinião!), ver outros a pedir o seu silenciamento e afastamento do jornal, ver uma lista de “notáveis” a pedir a sua cabeça (entre os quais, pelo menos dois que julgo recordar terem pedido também o fuzilamento dos implicados no 11 de Março de 1975), traz-me à memória tiques salazarentos de persistente duração. Lendo o texto de Fátima Bonifácio e as desbragadas reacções a ele da esquerda-pronta-a-saltar, só me ocorre uma pergunta: quantos anos serão precisos para apagar de vez os vícios de 48 anos de ditadura?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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