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domingo, 14 de julho de 2019

Um medo alemão

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 13/07/2019)

À quarta é de vez? A administração do Deutsche Bank (DB) promete o sucesso do plano de reestruturação, com 18 mil despedimentos e a redução da unidade de investimentos, passando a concentrar-se no retalho. As razões da emergência são os €2,8 mil milhões de prejuízo no último trimestre, com o valor das ações no nível mais baixo em 149 anos. Mas o icebergue é mais fundo, não bastou uma recapitalização recente de €30 mil milhões e um primeiro ‘banco mau’. O medo está, por isso, a instalar-se nos circuitos financeiros. O FMI não usa meias-palavras, considera o DB como o maior dos bancos que é um risco sistémico.

AS BOAS NOTÍCIAS SÃO MÁS

O Governo alemão trata o caso como um perigo soberano, mas é duvidoso que tenha os meios para salvar o banco se o pânico se instalar. Falhou tudo o que tentou, como conduzir o banco a uma fusão com um concorrente, o Commerzbank. Entretanto, dois grandes bancos, a suíça UBS e o holandês ING, indicaram que poderiam propor uma fusão, que na verdade seria comprar os restos do DB depois de desfeito — a questão é que alguém tem de pagar a conta.

A dimensão do problema não é sequer fácil de medir. O DB tem 24 milhões de clientes, um banco postal e o maior gestor de ativos da Alemanha. Teve a ambição de ser o poder alemão na globalização, salvou-se sempre e quem se lembra do resgate da Grécia sabe do que se trata. Só que tem uma dívida tóxica colossal. Por causa disso, quer criar um novo ‘banco mau’ com 74 mil milhões de euros em ativos, mais do que se supunha há poucas semanas. O caso é que a exposição real a ativos de risco será pelo menos de €288 mil milhões (o valor nacional dos seus derivados é 12 vezes maior, o triplo do PIB europeu, mas isso diz pouco sobre o valor real).

E AS MÁS SÃO PÉSSIMAS

É importante perceber como é que o banco chegou a estes valores astronómicos. Talvez o mecanismo mais importante tenha sido especializar-se em investimento especulativo com uma avalancha de liquidez em dólares, que ainda é a moeda de referência para dois terços das trocas mundiais, usando para isso vários instrumentos cada vez mais arriscados. Um deles são os produtos derivados, como os swaps cambiais: o DB assina com um outro banco um contrato para lhe assegurar o câmbio de euros por dólares a um preço fixo a longo prazo. E este banco empresta em dólares, que não tem nos seus cofres, sabendo que os pode ir buscar ao DB sempre que precisar, usando este contrato. A pirâmide vai crescendo entretanto, muitos agentes financeiros e bancos usam o mesmo procedimento e, assim, a expansão financeira e a liquidez das últimas décadas apoiou-se nesta ficção. O DB quis ser o maior banco europeu para competir com os norte-americanos jogando em câmbios e montanhas de dívida.

O banco tornou-se deste modo o epicentro de tal negócio. E chegou desta forma aos €288 mil milhões. Por isso mesmo, o banco tem tentado na última década limpar esta conta, mas não o vai conseguir. Ao colocar no ‘banco mau’ uma parte do risco, quer vender esses contratos a preço de saldo, mas o truque de prestidigitação não evita ter que registar nas suas contas o prejuízo, sabendo ainda que o Governo, mesmo que o quisesse, não pode cobrir a parada, pois o buraco pode chegar a trinta anos do gigantesco superavit atual da Alemanha. É grande demais e é por isso que muita gente se lembra do Lehman Brothers. Talvez este abismo seja maior.


O caso Bonifácio

Depois de uma semana de celeuma sobre o artigo de Fátima Bonifácio que postula que “os ciganos são inassimiláveis” e “os africanos são abertamente racistas”, percebe-se que o caso em si é quase banal, a não ser pela curiosidade de Ventura ser ali enunciado em modo mais troglodita. Daniel Oliveira, Marta Mucznik ou Francisca Van Dunem, entre outros, arrumaram o assunto com elegância.

A fantasiosa reconstrução de uma história mágica (“as mulheres partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade”) ou o simplismo discriminatório (“isto não se aplica a africanos nem a ciganos”, pois não “descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”) são só a triste repetição de teses racistas que marcaram a meia-noite do século XX.

Mas, como Bonifácio faz parte de uma rede de gente fina que exibe a sua deriva extremista como se fosse o superior enunciado do senso comum, a tribo, mesmo que meio envergonhada, levantou-se em sua defesa, alegando, à falta de melhor, que o direito de opinião estava em risco se o racismo não fosse tolerado. Ela própria calou-se. Falaram por ela Helena Matos (“Não interessa se concordo ou discordo (...), o que interessa, o que é grave [é que] a ditadura das causas triunfou”) e Rui Ramos, que despejou os insultos em que é tão prolixo (“repugnou-me a canalhice das calúnias e das ameaças (...) e a inspiração de um dos mais asquerosos projetos políticos do nosso tempo (...) e porque a má-fé e a estupidez dominam este debate”). Como a pessoa mais inocente compreende, se tudo é tão superlativo é porque o navio já naufragou. Ora, a senhora professora há décadas que passeia a prosápia como se fosse um modo de vida e escreve tudo o que lhe apetece, sem qualquer restrição ao seu direito de opinião.

Resumindo, o caso Bonifácio só tem um motivo de curiosidade. Revela como o nosso tempo repete a tragédia dos anos 30, com a rendição de liberais ao totalitarismo, agora fascinados por Trump e Bolsonaro ou Salvini e Orbán. A “Cristandade” como referencial político, a raça como valor civilizacional, a superioridade branca como moral... já vimos isto tudo. É esta banalidade que é perigosa. Acrescente-se um Protocolo dos Sábios do Sião e teremos o que precisamos para um frémito de orgulho guerreiro que desce dos salões até aos arruaceiros da nova direita.


Casos triviais de pilhagem de dados

Episódio um. A carta do Santander aos clientes começa assim: “Os bancos são atualmente obrigados a recolher um conjunto de informações muito vasto sobre os seus clientes, respeitantes à sua identificação e conhecimentos (disse mesmo “conhecimentos”?), com a finalidade de permitir a adequação dos produtos e serviços prestados, no respeito da legislação aplicável e de procedimentos internos definidos para o efeito”. Aqui tem um monumento de falsidade. A legislação é exigente sobre a informação que os bancos devem ter sobre os clientes, mas não para “permitir a adequação dos produtos e serviços prestados”. Trata-se de uma invocação de autoridade para assustar o cliente.

Prossegue a carta: atualize o seu “comprovativo de morada” e, de seguida, o “comprovativo da entidade patronal/profissão”, o que já é excessivo (uma carta da entidade patronal é condição para ter uma conta bancária?). Mas chega-se então ao essencial, o cliente é intimado a “entregar” uma “declaração de património” e uma “comprovação de património”. Ora, esta carta é enviada a clientes de conta corrente e sem qualquer crédito em curso. Aliás, é assinada por Carla Santos, da Direção de Coordenação de Marketing. Ou seja, quer estabelecer uma base de dados para o marketing do banco. Mas não ficamos por aqui. Se o cliente não enviar imediatamente a dita comprovação de património, haverá “consequências especialmente gravosas, incluindo o encerramento de contas bancárias”.

Dois meses depois, nova carta. Se o cliente não enviou os tais dados, haverá “o encerramento de contas bancárias”. Portanto, a direção de marketing do banco, querendo “adequar” a sua oferta financeira, decide assustar os clientes para obter informação sobre o seu património e “conhecimentos”. O procedimento é abusivo, a ameaça é ilegal, a base de dados é clandestina. É tudo errado.

Episódio dois. Vai renovar o cartão do passe social? No impresso, é “obrigatório” declarar o e-mail e o telemóvel. Mesmo que depois assinale os campos de rejeição de publicidade da empresa e outros spams, lá está, para ter o passe social é “obrigatório” dar à empresa aqueles dados. Mais uma vez, é uma base de dados ilegal.

Dir-me-ão que são histórias triviais do nosso tempo. São mesmo. E há uma sabedoria ancestral que diz que, se quer conhecer o vilão, basta pôr-lhe um bastão na mão. Estas empresas ameaçam com o seu bastão e pensam que ninguém repara. Chama-se pilhagem de dados.

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