(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 03/08/2019)
A primeira renúncia de uma juíza na história do Tribunal Constitucional deveria sempre ser explicada ao país. Mais ainda quando foi logo posta a correr uma versão apócrifa sobre os motivos, acusando-a de "feminismo excessivo" e o presidente do seu sindicato a ataca.
A possibilidade de construir verdades com opiniões sobre coisas que não se conhecem é um luxo que não está ao alcance de todos. Mas, infelizmente, há histórias tão bem contadas que os factos nunca mais desmentem."
As palavras são de Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Escreveu-as há um ano, no Público, sob o título "Os factos de uma história que se conta por aí". No texto, o desembargador decide fazer fact checking a uma narrativa que corria sobre o processo que opôs o seu famoso colega da Relação do Porto Neto de Moura a militares da GNR, os quais participaram contra ele ao Conselho Superior de Magistratura e contra os quais ele apresentou queixa por denúncia caluniosa e falsidade de testemunho.
Na primeira instância os GNR foram absolvidos; Neto de Moura recorreu para a Relação, onde foram condenados. Como o relator do acórdão fora colega de Neto de Moura, surgiu a suspeita de corporativismo, que leva Soares a fazer o tal fact checking. E como? Lendo o acórdão acusado de corporativismo.
Conclui então que os polícias tinham mesmo "apresentado uma denúncia falsa e mentido sob juramento para que o juiz fosse punido disciplinarmente." E a partir daí faz doutrina: "Acredito nas virtudes de um sistema em que é absolutamente legítimo e saudável criticar as decisões e procedimentos dos juízes. Mas prefiro que os críticos leiam primeiro as decisões que criticam."
Esta preferência do sindicalista tem toda a razão de ser: ninguém deverá criticar o que desconhece. Motivo pelo qual a sua última crónica, sobre a renúncia da juíza Clara Sottomayor do Tribunal Constitucional, suscita, para usar mais uma vez as palavras do próprio, "perplexidades que merecem reflexão".
Soares de quem não se encontram comentários sobre o que o seu colega Neto de Moura colocou em acórdãos públicos, não hesita neste caso em chegar à "sentença": a juíza é feminista e por ser feminista não pode ser imparcial e portanto não pode ser juíza.
No texto, intitulado Militâncias e Justiça, o desembargador atribui a saída da juíza - anunciada a 25 de julho e sobre a qual, apesar de ser a primeira vez que tal sucede na história do TC, não existe ainda uma explicação oficial --, a uma alegada recusa daquela de "retirar do projeto de acórdão sobre a constitucionalidade da lei dos metadados uma consideração lateral que equiparava a violência doméstica a terrorismo."
Para corroborar esta versão, que o juiz situa num vago "segundo veio a público" (trata-se de uma notícia do Público sem fonte identificada, e essa versão já foi contraditada, no DN, numa notícia por mim assinada), cita um post recente de Sottomayor no Facebook: "A violência contra mulheres e meninas deve ser considerada uma forma de terrorismo. Talvez então os Estados atuem". Conclui Manuel Soares: "Proclamou no FB aquilo que tinha tentado pôr no acórdão."
"Aquilo que tinha tentado pôr no acórdão". Temos pois que um juiz no ativo refere publicamente o que estará ou não estará num determinado projeto de um acórdão do Tribunal Constitucional.
Sendo este o mesmo Manuel Soares que determina ser necessário "os críticos lerem primeiro as decisões que criticam", só podemos concluir que leu o projeto de acórdão. Mas quem lho poderia autorizar, se não é do TC? E, ainda que o tivesse lido, poderia, sendo juiz e no ativo, comentá-lo publicamente?
O Estatuto dos Magistrados Judiciais, no artigo 12º, impõe o "dever de reserva", que impede juízes de "fazer declarações ou comentários sobre processos, salvo, quando autorizados pelo CSM, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo". Teve Soares autorização do CSM para comentar? E se não teve, que vai aquele órgão disciplinar fazer face a declarações nas quais não se descortina ao juiz qualquer "interesse legítimo" e que, pelo contrário, põem em causa a honra de uma magistrada?
É que a imputação a Sottomayor da tal tentativa de colocar no acórdão a comparação de violência doméstica a terrorismo permite a Soares acusá-la de querer exprimir "na decisão judicial convicções pessoais laterais à fundamentação", numa "decisão-comício", "em que o juiz usa o poder em que está investido para forçar a imposição das sua convicções pessoais sobre matérias alheias ao processo". Para a seguir, com base naquilo que considera a "correta interpretação do dever de reserva" como está plasmada no "Compromisso ético dos Juízes Portugueses", o pronunciar como "eticamente ilegítimo". E daí passa a perguntar: deve essa "falha ética" ter relevância disciplinar?
A pergunta não é inocente: também "veio a público" que Sottomayor foi ameaçada com um processo disciplinar pelo presidente do TC, Manuel da Costa Andrade. Mas aqui o desembargador opta por não se deter no assunto: "Não quero avançar mais nesta matéria enquanto estiver pendente nos tribunais a apreciação do caso de outro juiz que foi punido pelas expressões que escreveu num acórdão."
Esse outro juiz é Neto de Moura que, punido disciplinarmente pelo CSM com uma advertência registada, devido aos seus acórdãos sobre violência doméstica, recorreu para o Supremo dessa punição. E aqui começa a fazer sentido a crónica de Soares: estabelecer um paralelismo entre o juiz acusado de ser misógino e machista e condenado por desculpar agressores usando expressões insultuosas contra as vítimas de violência doméstica, trazendo à colação a norma do Código Penal de 1886 que permitia ao marido "enganado" matar a mulher e a "tradição" de lapidação das adúlteras, e a juíza que assume ser feminista.
Soares, de quem, em pesquisa de Google, não se encontram comentários, e muito menos censórios, sobre o que o seu colega da Relação do Porto colocou em acórdãos públicos, não hesita neste caso em dar a notícias sem fonte identificada foro de verdade e em a partir daí, sem qualquer outra "prova", chegar à "sentença": a juíza é feminista e por ser feminista não pode ser imparcial e portanto não pode ser juíza.
"O juiz militante com fidelidade psicológica a causas sociais - sejam elas quais forem - tende a distorcer o sentido da lei para a acomodar às próprias convicções", escreve Soares, depois de referir que Sottomayor se assume como "ativista de causas feministas". E isso, decreta, "é a negação da Justiça (...). Fazer justiça não é fazer engenharia social instrumentalizando as decisões a causas que não sejam as do Direito. Isso é outra coisa."
O juiz e líder sindical ou considera que o dever de reserva não se lhe aplica, ou está convicto que no caso, como Sottomayor não é juíza "de carreira" e, horror, é feminista, tem licença para matar.
Este juiz não encontrou espaço, na crónica, para explicar o que no seu entender são "causas feministas" e por que motivo as considera "engenharia social". Mas Louçã, numpost no FB, elucida-o: feminismo é defender a igualdade de género, princípio imposto pela Constituição.
Pelos vistos Manuel Soares acha que tal, a igualdade de género e portanto a Constituição, é "engenharia social". Está nisso acompanhado por ilustres como Bolsonaro e Bannon, mas talvez deva então dedicar-se a outra ocupação: a de militante anti-igualdade, na qual ninguém se surpreenderá que escreva uma crónica inteira, com base em "diz que disse", para atacar uma magistrada.
Já como juiz e como líder sindical, das duas uma; ou considera que a tal "correta interpretação" do dever de reserva que consta no Compromisso Ético -- "tanto no exercício das suas funções como fora delas, o juiz mantém reserva sobre quaisquer procedimentos ou decisões tomadas, suas, ou de outros juízes, abstendo-se de as comentar em público" - não se lhe aplica, ou está convicto que no caso, como Sottomayor não é juíza "de carreira" e, horror, é feminista, tem licença para matar.
Qual das hipóteses está correta ver-se-á em breve, quando o CSM decidir se permite ou não à magistrada defender-se publicamente.
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