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sábado, 21 de setembro de 2019

Mas é o melhor que se arranja

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 21/09/2019)

Miguel Sousa Tavares

Como é sabido, os chamados politólogos e a imprensa escrita decretaram já há muito tempo que os debates televisivos entre candidatos não adiantam em nada para o esclarecimento ou para a determinação da intenção de voto dos eleitores. De duas uma, então: ou adiantam mais as “arruadas” e comícios para os fiéis, os cartazes de rua e os programas eleitorais que ninguém lê, ou nada adianta porque o voto já esta pré-determinado e tudo numa campanha eleitoral, e não apenas os debates, é essencialmente inútil. A menos que, nos tempos que correm, se tenha já desistido de acreditar nos “canais abertos” da democracia como forma privilegiada de fazer política e tudo se deva apostar nas redes sociais e na sua infinita manipulação informativa e formativa, de que o referendo do ‘Brexit’, as eleições americanas, italianas, brasileiras e outras de que nem suspeitamos foram exemplos eloquentes. Até prova concludente em contrário, não partilho de nenhuma destas teses o suficiente para acreditar na inutilidade dos debates. E o debate de segunda-feira entre os dois principais candidatos a governarem-nos foi, para mim, um bom exemplo disso.

Também se nos apressaram a dizer que 2,7 milhões de espectadores não foi muito: foi menos 600 mil dos que há quatro anos seguiram o debate entre António Costa e Passos Coelho. Pois, seja. Mas se há quatro anos esse debate permitiu a António Costa apresentar aos portugueses um programa alternativo à continuação da austeridade sem desfalecimentos proposta por Passos Coelho, e isso acabou por levar a uma inversão da maioria de governo, também o de agora permitiu a Rui Rio apresentar uma alternativa, económica, e não só, à continuação de uma política que, à partida, se diria confiante e inabalável, de António Costa. E é para isso que servem os debates. Para mostrar as diferenças entre os candidatos, as suas crenças e as suas estratégias. Com mais ou menos espectadores, muitos ou poucos, valeu a pena para quem viu.

Contrariando outra das verdades dos “politólogos” — a de que os debates não se ganham, apenas se perdem e por culpa própria, pelo que se deve jogar sempre à defesa, evitando cometer erros — Rui Rio esteve ao ataque desde o início, mas um ataque consistente, centrado no essencial e não em detalhes ou farpas de política rasteira. Explicou por que razão considera que estes quatro anos foram uma oportunidade perdida, apesar dos impressionantes números de criação de emprego e contenção do défice, conseguiu resumir bem a sua alternativa económica, que passa pela limitação da despesa pública corrente (mantendo-a porém acima da inflação) e com isso aliviando em 25% a carga fiscal e subindo em 25% o investimento público, e manifestou a sua crença, de que infelizmente não partilho, de que é possível conter os gastos galopantes na Saúde simplesmente gerindo melhor: em teoria, tem razão; na prática, não passa de uma ilusão. Aliás, esse é o principal ponto fraco do programa de Rui Rio: ele não gosta do Estado tal como está e funciona, e acredita que é urgente e é possível melhorá-lo e torná-lo mais eficiente e menos despesista. Um Estado eternamente capturado por interesses de corporações ou sectores com acesso privilegiado ao poder e aos media, como ficou até bem patente numa das perguntas que Rio teve de enfrentar: “O que podem os professores esperar ganhar consigo?” Eu teria perguntado de volta: “Porquê os professores, em particular?” Mais diplomático, ele respondeu: “Igualdade de tratamento.” Já não seria mau...

Nenhum português dos que são contribuintes líquidos — isto é, dos que pagam mais ao Estado do que aquilo que recebem dele — terá ficado indiferente à frase mais marcante de Rui Rio : “Há um momento em que é preciso ser arrojado. Não é possível ter a despesa do Estado sempre a subir, subir, subir, e os impostos atrás, a subir também.” Esta frase é todo um programa, não apenas de política económica, mas de política, simplesmente. E não para hoje apenas, mas para futuro. Ela marca a grande diferença evidenciada pelo debate, daquilo que verdadeiramente separa Rui Rio de António Costa, os 40% de contribuintes líquidos de todos os outros portugueses, os que acreditam que o que mais contribui para o desenvolvimento de um país são as poupanças investidas por particulares e empresas ou os que defendem a captação da maior parte dessas poupanças pelo Estado, para serem gastas por ele. É uma discussão velha como o mundo e que alguns resumem a uma querela direita-esquerda, mas que cada vez o é menos, quando olhamos para os novos problemas dos tempos de hoje, como a necessidade imperiosa de combater as alterações climáticas e sabemos que, por exemplo, os €85 mil milhões que vão ser necessários investirmos aqui durante 30 anos para procedermos à descarbonização do país terão de vir do investimento das empresas e das famílias. E seguramente que tal não será feito com o nível de fiscalidade que temos...

É preciso repetir isto várias vezes, porque há quem ainda não tenha percebido ou não queira perceber: em 2011, o Estado levou-nos a todos à falência. Destruiu milhares de empresas, centenas de milhares de postos de trabalho, riquezas e poupanças acumuladas, expulsou os melhores e os mais jovens. E depois, para pagar os seus desmandos, sugou-nos de impostos, como se a culpa tivesse sido nossa. O mérito do Governo de António Costa e Mário Centeno foi pôr um termo a essa vertigem castigadora e apostar que, aliviando o sacrifício, dando mais dinheiro às pessoas, era possível encontrar outra saída.

Mas o monstro mantém-se intacto e a sua voragem também. Ao menor sinal de alívio, vimos como os mesmos de sempre, os tais que vivem ancorados nas benesses do Estado, foram os primeiros a reivindicar de volta os seus antigos privilégios e até novos. E, curiosamente, se já antes tínhamos visto a direita a castigar-nos com impostos, depois vimo-la a colar-se aos privilegiados do sector público — de que o caso dos professores foi eloquente e inesquecível — e Costa e Centeno a resistirem, como lhes competia. Pois, é verdade, tudo anda muito confuso e o que deveria ser claro torna-se às vezes obscuro. O desespero é mau conselheiro — na política, como no resto. Mas, depois de 2011, devia ser claro para todos que o Estado não pode voltar a comportar-se como o inimigo da comunidade. Devíamos olhar para o Estado e para os serviços que ele nos presta — e que concordamos que deve continuar a prestar-nos — e vermos ali não quase sempre uma fonte de eternas reivindicações e despesas acrescidas que teremos de pagar com mais e mais impostos, mas, pelo contrário, vermos um corpo de organismos que tentam melhorar a nossa vida com os serviços que nos prestam e com respeito pelo dinheiro que é de todos e que é escasso.

Eu creio que, para quem esteve atento, esta foi a diferença marcante entre as propostas de Rui Rio e de António Costa. Continuar no caminho seguido até aqui, que tem tido bons resultados, é a proposta de Costa. Menos dinheiro para o Estado, mais dinheiro para as pessoas e as empresas, é a proposta de Rio. E o que fará o Estado com menos dinheiro? Gere melhor e gasta menos, é a resposta de Rio. Na verdade, eu não sei se António Costa não concordaria também com isto, se pudesse, mas Mário Centeno aposto que sim. O problema está em atrever-se. Atrever-se a enfrentar o monstro. Um monstro congeminado por Salazar, deixado à solta pelo PREC, acarinhado por Cavaco Silva e tornado insaciável desde então.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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