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domingo, 15 de setembro de 2019

Os Navegadores

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 14/09/2019)

Clara Ferreira Alves

De vez em quando, ouço a frase “os portugueses foram grandes navegadores”, entremeada com vários prodígios da raça lusíada. O autor da frase é um desses guias de tuk-tuk que circulam nas ruas da cidade de Lisboa apinhadas de turistas. Uma manhã entre Alfama e o Terreiro do Paço é suficiente para apanhar a deixa meia dúzia de vezes. Os Descobrimentos, como Fernando Pessoa, tornaram-se uma marcha em bicos de pés. Pessoa tornou-se um cromo absurdo, desligado da figura real do poeta, e mais ainda da obra, e as caravelas tornaram-se um alfinete de peito que implica certa grandeza sem as conotações imperiais que tanto destoam em mentes estritas. Os navegadores.

E que sabemos nós ao certo das nossas navegações, fortalezas, entrepostos e domínios do império que excedam a cartilha encomendada? A sebenta da escola primária? O Gama e o Cabral e o infante e o caminho marítimo e o Cabo das Tormentas com o Adamastor e o mar salgado quanto do teu sal são lágrimas de Portugal, o mar da vulgata pessoana. Que sabem os portugueses, grandes navegadores do turismo contemporâneo e dos expedientes de sobrevivência dos remediados, agora que o império secou e a cornucópia deixou de abastecer, da história e do legado imperial? Quase nada.

Ao contrário dos ingleses, e da supremacia histórica e cultural cuidadosamente cultivada, ensinada e elaborada, os portugueses descolonizaram e logo esqueceram. Não existe, para o cidadão comum, conhecimento do império. Poder-se-ia dizer que não existe porque a revolução e o sentimento esquerdista multiculturalista dominante na fase seguinte, a europeia, se encarregaram de destruir essa memória que transportava a carga negativa da guerra colonial e de uma opressão imperial tardia e anacrónica. Macau foi devolvido em 1999. Ou seja, ontem. E a ira dos retornados, e a curta memória que começava e acabava muitas vezes no século XX, foi neutralizada pelas benesses e fundos da democracia europeia. Continuámos a traficar com África mas deixando de lado com todo o escrúpulo qualquer política ou diplomacia que pusesse em causa o comércio, a ganância, e a novíssima cordialidade com os governantes africanos. A conveniente falta de memória degenerou na ausência de opinião contrária, ou de manifestação de desagrado com métodos despóticos, corruptos e corruptores dos países descolonizados. A massa crítica nunca foi o nosso forte.

Se os laços com África e o Brasil justificavam a proximidade e as extravagâncias da lusofonia, responsáveis pelo catastrófico Acordo Ortográfico, que deu cabo da raiz latina da língua portuguesa e a transformou num patuá abrasileirado que nem os brasileiros reconhecem, os laços com a Ásia nem sequer foram pensados. Acrescente-se que, durante anos, o Acordo esteve à disposição do debate público, mas só quando foi aprovado em letra de lei se ergueram os opositores.

Tarde demais.

A internet tinha-nos subsumido no português do Brasil. No princípio das negociações, muito pouca gente se opôs, certamente pela indiferença e ignorância do costume. E muita gente comprou as vantagens de uma uniformização da grafia que se julgava coerente e que teria como consequência inevitável a circulação de livros e autores portugueses nos países lusófonos. Sabemos hoje no que isto deu. O Acordo, que devia ter sido morto à nascença, como tantos de nós quiseram nos finais de 80, foi uma atrapalhada e trapalhona decisão comercial. Não serviu para nada, não serviu para ninguém.

Não é apenas o Acordo a prova dessa destruição compulsiva da memória. O legado português na Ásia foi completamente ignorado e desleixado. Para quem viaja nesse continente e vai verificando em placas, relatos e memoriais que “os navegadores” apregoados pelos tuk-tuks estiveram em toda a parte antes de toda a gente, desembarcando na Índia, na China, no Japão, na Birmânia, no Vietname, estabelecendo-se no Sião e no Ceilão, deixando incontáveis nomes, famílias, arquiteturas, tradições e uma influência gastronómica considerável, fica surpreendido pela ausência de relações com as nações com as quais tivemos trocas comerciais e culturais importantes. Olhar para os restos imperiais em Cochim, e os defuntos centros de intercâmbio cultural que nunca funcionaram porque nunca neles foi investido um cêntimo, verificar o afastamento da gente da Índia, da gente da Malásia, da do Sri Lanka ou da Tailândia, atestar a ignorância das misturas linguísticas, desconhecer as legiões de Fernandos e Fernandes que ainda guardam a memória circulante do império e da língua, é constatar que rasurámos a nossa História.

Na Tailândia, existem fios de ovos, bem como uma doçaria que é a herdeira direta da doçaria conventual portuguesa, à base de açúcar e ovos. Uma senhora improvável chamada Maria Guyomar de Pinha, casada com o aventureiro Constantino Phaulkon, se encarregou de cozinhar à portuguesa fazendo jus à origem lusitana misturada com a japonesa e a bengali. Em Hong Kong, os pastéis de nata ganharam vida própria e tornaram-se nativos das padarias. Na Birmânia, a presença portuguesa ultrapassa a onomástica e revela-se em lendas e narrativas como a de Felipe de Brito e Nicote, uma personagem de ficção que dava pelos nomes de rei do Pegu ou rei de Sirião. Por toda a Ásia, vemos os traços da nossa influência linguística, arquitetónica e gastronómica, militar e cultural. Nada fizemos por isto. As coisas foram sobrevivendo apenas porque foram sobrevivendo, por força do uso e do costume, perdidas as referências. E agora, os que usam as antigas tradições incorporaram-nas como suas, esqueceram eles mesmos a origem das práticas e dos nomes.

Portugal não existe na Ásia, para o cidadão comum. Ou existe. Existe no rosto pixelizado de Cristiano Ronaldo nos anúncios luminosos, e nas proezas futebolísticas. Digam a um asiático eu sou português e ele responderá, Cristiano. Dos navegadores por mares nunca dantes navegados é o que resta.

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