por estatuadesal
(Manuel Loff, in Público, 14/11/2019)
Manuel Loff
A América Latina é, com as revoluções mexicana (1917) e cubana (1959), a Unidade Popular chilena (1970-73) ou o sandinismo (1979), um laboratório de experiências políticas com mais impacto mundial do que se julga. A grande viragem progressista, que irrompeu com Chávez (1998) e se alastrou com os movimentos emancipadores de Rafael Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia) e com as vitórias eleitorais contra as receitas do FMI (Lula, os Kirchner, Pepe Mujica), constituiu a primeira grande vaga de contestação global ao neoliberalismo que começou a devastar os direitos sociais a partir do fim dos anos 1970. Os latino-americanos têm dado lições ao mundo sobre a emancipação camponesa e a batalha pela terra, que hoje, finalmente, se começa a perceber ser uma batalha pela salvação da natureza; sobre a emancipação das mulheres e das minorias LGBTI num subcontinente onde a violência de género tem sido mais combatida do que em qualquer outro; sobre a luta anticolonial contra a dominação económica, sustentada sobre o preconceito racista e a crueldade social das burguesias de origem europeia. A origem popular de Lula ou Mujica, que Chávez e Correa sejam mestiços e que Evo Morales seja um uru-aimará, são argumentos centrais no ataque a todos eles e nas caricaturas que deles fazem os media e as direitas de todo o mundo. O racismo nauseabundo e o fundamentalismo religioso de Bolsonaro ou do novo líder da extrema-direita boliviana, Luis Fernando Camacho, garantem a ambos um lugar de destaque como símbolos acabados da burguesia branca latino-americana.
Depois de terem desencadeado e coordenado nos anos 1970 a batalha pelo extermínio físico e político das esquerdas revolucionárias, fomentando por todo o lado ditaduras de militares e ricos empresários, os EUA, julgando-a definitivamente vencida, passaram nos anos 1980 a permitir que se aliviasse a repressão e que os militares se retirassem com a condição de que os seus sucessores prosseguissem extensão à América Latina das políticas neoliberais já adotadas pelas direitas e a social-democracia dos países ricos. Esta fórmula democratização + privatização generalizada + aumento da desigualdade entrou em crise no final do século passado e abriu caminho à vaga progressista, que, por sua vez, entrou em crise a partir de 2015.
Não é que quem sempre mandou nas repúblicas americanas desde há 200 anos tivesse aceitado algum dos projetos de mudança socioeconómica, que, apesar de todas as suas hesitações (raramente se renacionalizou algum dos avultadíssimos recursos privatizados nos anos 1990; grandes multinacionais americanas, europeias, agora também asiáticas, continuaram a operar livremente), trouxeram melhorias consistentes ao nível de vida dos mais pobres e um reconhecimento constitucional da plurinacionalidade de Estados historicamente construídos sobre o genocídio dos povos ameríndios (Venezuela, Bolívia, Equador, mas não no Brasil, ou no Chile). Também na radicalização das direitas, a América Latina foi pioneira. Acrescentou-se sabotagem económica e corrupção a modelos de produção não reformados; em sociedades em que a violência é um recurso permanente, juntou-se-a a processos de contestação social. Direitas abertamente saudosas das ditaduras do passado recente passaram a denunciar o “autoritarismo” e o “populismo” dos governos progressistas ou a “ditadura cultural marxista” que estaria na agenda destes. Para os derrubar, têm usado sobretudo meios “institucionais”: Manuel Zelaya nas Honduras (2009), Fernando Lugo no Paraguai (2012) e Dilma Rousseff no Brasil (2016). Pela via eleitoral, ganharam apenas na Argentina (Macri, 2015) — e acabam de voltar a perder; e no Brasil, mas só depois de prenderem Lula. Como acaba de se demonstrar na Bolívia (e em 2002 contra Chávez), nunca perderam o velho tique do golpe militar.
Enganou-se quem julgava que, com Trump e Bolsonaro, a vitória das direitas americanas era irreversível. O regresso em força dos movimentos sociais, persistentes e corajosos como em poucos lugares do mundo, no Equador e no Chile (onde a democratização não tocou no neoliberalismo económico herdado da ditadura), o esvaziamento de Guaidó na Venezuela e o regresso do kirchnerismo dão razão a Álvaro García Linera, o vice-presidente boloviano que agora se exilou no México: “Lutar, vencer, cair. Levantarmo-nos, lutar, vencer, cair, levantarmo-nos. Até que se nos acabe a vida.”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
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