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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O lugar narrativo da mãe que abandonou o bebé

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 20/11/2019)

Daniel Oliveira

A história do bebé abandonado em Santa Apolónia é daquelas que não me puxa à escrita. Não é insensibilidade. É até o oposto. A forma como todos os o que procuram a aparência do bem aproveitam estes momentos para uma boa oportunidade fotográfica retira ao drama íntimo tudo o que ele tem de íntimo, transformando cada um dos envolvidos em personagens de narrativas políticas.

O herói acidental com que Marcelo se fez filmar, para sua própria glória, encarregou-se de estragar a banda desenhada simplista, obliterando todos os que, na realidade, salvaram a criança. Isso não faz dele nem bom nem mau, apenas nos recorda que as pessoas não se encaixam apenas nas categorias sociais com que as vemos: o sem-abrigo capaz de um gesto extraordinário.

O espanto, como se um sem-abrigo não fizesse o que qualquer um de nós faria no seu lugar, deu lugar à desilusão – afinal um sem-abrigo pode ser tão mesquinho e vaidoso como nós e, depois, à desculpabilização paternalista. Tudo o que acontece quando transformamos pessoas em personagens em vez de serem o que são: pessoas. E quanto mais desestruturadas forem as suas vidas, mais contraditórias elas tendem a ser. Porque não há nada de belo e puro na miséria.

Mas foi em torno da mãe de 22 anos que se gerou um debate caricatural. Daqueles onde as narrativas políticas moldam as pessoas às personagens-tipo que precisam, alienando-as de toda a individualidade. O ato extremo e inqualificável (no sentido em que não se pode qualificar) de uma mãe (ou pai) abandonar o seu filho à sua sorte não tem nada de antinatural, ao contrário do que se pensa. Mas é de uma violência primitiva que desafia tudo o que temos, por milénios de desenvolvimento, como certo. E perante a incompreensão desse ato geram-se duas narrativas: a da mãe agressora e a da mulher vítima.

A tese da agressora trata a miserável sem-abrigo como alguém que, independentemente do seu estado, sabe distinguir o bem do mal e escolheu o mal. Apesar de, segundo o psicólogo clínico forense, ela ser imputável, porque tem consciência do que fez, o seu comportamento evidencia perturbações de personalidade causadas pela “instabilidade emocional e baixa autoestima”. Não é relativismo moral, é análise técnica. Para não parecer socialmente insensível, o retrato precisa de heróis igualmente pobres, que contrastem com ela. Que confirmam, eles mesmos, a possibilidade de escolher o caminho da bondade. No caso, o sem-abrigo que salvou a criança. Tudo se resume ao confronto eterno entre o bem e o mal.

A tese da vítima trata a mulher que abandonou o bebé como alguém que foi empurrada pelo desespero, incapaz de fazer escolhas. Uma mulher pobre a quem o Estado não deu resposta – saíram artigos sobre as falhas no acompanhamento aos sem-abrigo –, que se entregou à prostituição e engravidou porque “os homens pagavam mais quando o sexo era sem proteção”. Toda a responsabilidade lhe é exterior.

Num e noutro caso a personagem cumpre um papel determinado numa narrativa ideológica que a ultrapassa. A indignação ou a compaixão são, na maioria dos casos, recursos estilísticos.

Claro que as personagens, que não foram criadas por nenhum guionista omnipotente, pregam partidas. O sem-abrigo bom afinal aldrabou toda a gente e queria era aparecer e contar os seus próprios dramas. “Toda a gente que aqui esteve foi Deus que pôs aqui”, resolveu Marcelo Rebelo de Sousa, unificando assim as narrativas possíveis na mais reconfortante e inútil de todas. A mãe soube que estava grávida muito antes, não quis abortar e não quis que o bebé fosse encontrado. Os nacos desta história são disputados num campo de batalha, porque cada pedaço serve a história-tipo que se quer construir.

Há uma conclusão que todos podemos tirar, se quisermos ser honestos connosco mesmos: que a miséria em que estas pessoas se encontram tem responsabilidades sociais repartidas e que dela resulta, como todos sabemos, a miséria moral. Repito: não há nada de belo e puro no fim da linha.

Quando as coisas entram no espaço público são sempre despidas da sua complexidade. Notem que não nego a dimensão social e política do drama pessoal. Se o negasse, atiraria todas as narrativas políticas para o espaço da não existência concreta. Digo só que não chega. Que as pessoas são contraditórias. Que há pobres maus, que há mães más, que a maldade tem razões profundas e contraditórias, de responsabilidades da sociedade e dos próprios. Que as vítimas são agressores e os agressores foram vítimas. Que esse debate se faz, quando o queremos mesmo fazer, no campo das políticas públicas, sociais e económicas, para tentar que as pessoas possam ser um pouco mais aquilo que queriam mesmo ser. Cada drama individual não pode ser explicado por equações simples. Porque, parecendo muitas vezes generosas, elas roubam cada indivíduo concreto da sua própria história.

Talvez tenhamos de ter a humildade de dizer, sobre esta e muitas outras histórias pessoais: não sei o que ali se passou. Talvez, com muita sorte e trabalho, quem se aproxime dela e a oiça consiga vir a perceber. Não enquanto personagem social, mas como uma pessoa concreta.

É também com esta humildade coletiva que devemos debater a forma como a Justiça se deve comportar. Este caso não será o único em que o agressor – abandonar uma criança num ecoponto é obviamente uma brutal agressão – é vítima das suas circunstâncias e do abandono social extremo. Sabemos que os abusadores sexuais foram muitas vezes abusados, que as pessoas mais violentas cresceram muitas vezes em ambientes violentos e têm graves distúrbios de personalidade e falta de autoestima, que quem exerce a mais abjeta violência doméstica cresceu muitas vezes no meio dessa violência... Isso não pode implicar que todas estas pessoas se tornam inimputáveis. Quer apenas dizer que partilhamos com eles a culpa. Resumir o agressor-vítima a vítima é tão injusto como reduzi-lo a agressor. E é retirar às suas vítimas o direito à justiça, abandonando-as duas vezes. Partilhar a culpa implica identificar as causas, assumir responsabilidades e fazer um pouco mais do que as frases caridosas e já um pouco repetitivas que o Presidente dá em nome do Estado. É mesmo aqui que deve entrar a política. Não implica deixar de julgar e punir.

Defender, perante crimes graves, a punição sem reintegração é tão estéril como defender a reintegração sem a punição. Depois, há a vida concreta das pessoas. E essa baralha quase sempre as narrativas fáceis. Tanto as que isolam o indivíduo das suas circunstâncias, acreditando que somos apenas fruto das nossas próprias escolhas; como as que esvaziam o indivíduo da sua capacidade de escolher, transformando-o em simples marioneta do que a sociedade, essa entidade vazia de pessoas, fez dele. Todos sabemos, instintivamente, que algures, no meio disto, está a verdade. Mas quando contamos histórias que puxam para o equilíbrio que desejamos, apagamos a complexidade das coisas.

Todos percebemos que confrontam narrativas que dão mais ou menos saliência às condições sociais que moldam escolhas ou à liberdade de escolha de cada indivíduo. É um confronto válido e útil. Mas os dois pontos de vista não são, com o risco de passarem a ser caricaturas de si mesmos, a negação um do outro. E é por isso que nenhum deles chegará para contar a história do bebé abandonado e da sua mãe. Nem sequer chegará para explicar a reação de muitas pessoas, sobretudo quem tem filhos, talvez ainda mais as mulheres, perante um ato que tudo em nós rejeita. Uns optarão pelo nojo, outro escolhem a narrativa da mulher vítima que torne a coisa mais fácil de digerir. Talvez tenham todos razão, o que quer dizer que ninguém a tem. Talvez o erro seja querer contar a história do mundo na história irrepetível de uma pessoa.

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