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sábado, 30 de novembro de 2019

Saúde, habitação, IVA da eletricidade: o que escolher?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 30/11/2019)

Achou o Governo que pescar à linha os apoios para o Orçamento seria uma forma de vida. Até muito hábil, sussurraram os estrategos, dados os alinhamentos de forças que resultam das eleições e a suprema vontade de fazer o funeral à ‘geringonça’, afinal o que determinou todas as bizarrias da campanha eleitoral contra os anteriores aliados. A esses génios da arrumação política faltou pensar nas coisas da vida real, a começar por essa evidência de que um quadro contratual com objetivos partilhados é estabilidade. Agora que avança a preparação do Orçamento, torna-se evidente que o Governo fez uma má escolha, depende do que outros decidirem.

UMA PRIORIDADE ANTES DE TODAS: SAÚDE

Como há que escolher prioridades, que o Orçamento não dá para tudo, noto que as duas mais relevantes que resultam das eleições são a habitação e a saúde. Deveriam ser os planos estratégicos mais ambiciosos e os pilares da reorientação do investimento para conduzir a soluções com resultados visíveis em poucos anos.

Da habitação já aqui tratei. Sobre a saúde quero acrescentar a evidência: o desgaste sofrido no SNS já alcançou o ponto de alarme. Há anos que sabemos que este tempo chegaria, pois mais de metade do pessoal médico passou os 50 anos e não sobra capacidade de garantir as urgências. Mas também se sabe que o envelhecimento da população agravará a pressão, que sobem os custos com novos medicamentos, que a concorrência dos privados reduz as disponibilidade de profissionais. Se registarmos as escolhas dos sucessivos governos, incluindo o último, fica uma enciclopédia de ligeirezas (“somos todos Centeno”), de medidas contraproducentes (uma maioria absoluta do PS acabou com a exclusividade dos médicos, que já só abrange 43% dos 13 mil médicos), de preconceito corporativo contra a especialização de enfermeiros e de desculpas que envergonham. Acrescentem-se anos e anos de subfinanciamento, de adiamento de investimentos essenciais, atrasando o reequipamento ou a construção de hospitais, e a permissividade em relação a grupos financeiros com a porta giratória para esse mundo (um governante do PS na saúde não é hoje o presidente da associação de hospitais privados?), e teremos o retrato da exasperação dos profissionais.

Entretanto, a direita percebeu a oportunidade e martela nas falhas do SNS. Como o espaço público está invadido pela vertigem das urgências que fecham, esta estratégia é eficaz. Por isso, César e Ana Catarina Mendes sentiram o toque, pediram orçamento para a saúde e Costa fez uma promessa misteriosa. Os partidos de esquerda não dizem outra coisa desde há anos: salve-se o SNS e a democracia respira. Veremos então se agora é a sério, se é restabelecida a exclusividade que o Governo recusou no verão passado e se é contratado o pessoal necessário.

O IVA E O INVESTIMENTO

Como sempre, o problema é que é preciso pagar isto tudo. Se, além da saúde e da habitação, em que deveria crescer a despesa, um bom orçamento reduzir o IVA da eletricidade e corrigir os escalões do IRS, também baixa a receita. Há várias formas de pagar estas diferenças: o englobamento dos rendimentos, que é justiça elementar, a tributação das rendas energéticas, usar o excedente orçamental. Note-se que o IVA da eletricidade custa ela por ela o que o Governo já perde com o IRS a zero dos pensionistas estrangeiros.

Mas o primeiro-ministro tem razão, o dinheiro deve ser usado por ordem de prioridades. Então a pergunta difícil é esta: podem as decisões essenciais ser resumidas num programa de investimento? Talvez. Mas há uma dificuldade na promessa de mais investimento, é que orçamentá-lo equivale a antecipar que não é cumprido. Nos últimos quatro anos o logro ficou em quase três mil milhões, ou cinco vezes o que o Governo promete para habitação nesta legislatura. Se, em contrapartida, houvesse um grande salto no esforço público na contratação de pessoal na saúde e no programa de habitação, a conta seria mais confiável. Ora, como o Governo não quis um contrato estável para medidas estruturais, percebo que haja quem queira que no Orçamento se tenha um pássaro na mão em vez de duas promessas a voar. O tempo da credulidade para um investimento orçamentado que depois será cortado já acabou, e a responsabilidade foi de Centeno.


Andam por aí em pose Bolso

Bolsonaro rompeu com o partido em que se elegeu (o oitavo de que fez parte) e formou um novo. Escolheu o número 38 para identificar o partido, aludindo a um revólver. Para que não restassem dúvidas sobre a interpretação, a imagem do partido é um cartucho de bala. Entretanto, Abraham Weintraub, o ministro da Educação, assinalou os 130 anos da proclamação da república como tendo sido uma “infâmia”. Alguém comentou no Twitter que “se voltarmos à monarquia, certamente você será nomeado o bobo da corte”. O ministro responde: “Uma pena. Eu prefiro cuidar dos estábulos. Ficaria mais perto da égua sarnenta e desdentada da sua mãe.”

Vasco Pulido Valente, para insultar José Mário Branco, afirma que se enfadava com “uma palavra de ordem que se ouvia incessantemente na rádio entre baladas deste benemérito”, culpa dele. Maria Luís Albuquerque apresentou um livro de Mithá Ribeiro, uma das criaturas de extrema-direita no “Observador”, dedicado a Bolsonaro, a Trump e à nova direita europeia. Rui Ramos, outro dos arautos desse nicho ecológico, compila com Miguel Morgado um livro para erguer os valores radicais da direita. Algumas destas figuras repetem palavra por palavra os refrões de Bolsonaro, ansiando pelo renascimento da direita contra o “politicamente correto” e a “ideologia de género”, ou seja, contra os direitos das mulheres.

Nota-se em tudo isto um deslumbramento que enche estes corações puros. O facto é que chegam agora ao enlevo da extrema-direita alguns dos mais cerimonio­sos dos ex-governantes troikistas, e é no PSD, mais do que no CDS apavorado com a imitação, que os recrutas exibem a sua genuína alegria com tal revelação identitária. Outros, neste novo clima, mergulham de cabeça no extremo da prosápia: quando aqui citei uma investigação do “Diário de Notícias” que confirma, pela voz dos próprios, que Ricciardi telefonou a Miguel Relvas e a Ângelo Correia para ameaçar o Governo de então com o corte de relações diplomáticas pela China se não lhe fosse entregue a EDP e a REN, o banqueiro, que não contestou o DN, brindou-me com uma salada de palavras em que não se adivinha uma frase coerente. O mesmo fez Cotrim de Figueiredo, da Iniciativa Liberal, que entendeu que uma chusma de insultos desconexos é uma resposta gira à crítica sobre a sua pose programática. São balas de brandos costumes, bem sei, mas o que une hoje Albuquerque, Ramos, Morgado, De Figueiredo e outros a Bolsonaro e Weintraub é este entusiasmo tribal de quem pensa que a virulência trivializada é a porta para uma carreira promissora.


Quem manda nas bolsas?

Os computadores instalaram-se nos mercados financeiros desde que surgiram como tecnologias de processamento intensivo de informação. Não podia ser de outra forma. Mas talvez não esperássemos que os algoritmos automatizados já decidissem hoje 80% da compra de ações e 90% da de futuros, ou que, dos 31 biliões de títulos que existem nos mercados, 35% estejam detidos por fundos geridos por computadores. Não é ainda o “2001, Odisseia no Espaço”, nem consta que estes Hal já tomem decisões que formulem regras diferentes das que os programadores inscreveram no seu código genético. No entanto, é isso que estão a aprender, com o desenvolvimento do machine-learning e a inteligência artificial. O que é também evidente é que, para as agências financeiras, não há como voltar atrás. Nos Estados Unidos, há sete mil milhões de transações de ações que mudam de mãos cada dia e metade dessas operações decorre em regime de alta frequência e, portanto, cada ação pode ser vendida muitas vezes por dia. Este sistema exige a velocidade do computador e, por isso, as máquinas, delicadamente chamadas de investidores baseados em regras, são dominantes e vão crescer. Chegamos portanto a um ponto novo, que é esse misto de certeza de riscos menores em erros triviais e de riscos desconhecidos de contágio de erros porventura maiores. Nalgum dia de efeito dominó se dirá que perdemos o controlo das bolsas. Fica a consolação de que, na realidade, nunca o tivemos.

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