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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Coimbra – A homenagem a Antunes Varela

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 21/12/2019)

Quando, em outubro de 2000, o presidente da Relação de Coimbra mandou recolocar o busto de Antunes Varela no Tribunal, desolado por ser um amigo e antigo colega de turma do liceu da Guarda, não deixei de gritar a minha indignação, nos jornais locais e num diário, contra o branqueamento da ditadura que o gesto representou.

Então, já o ancião Antunes Varela se tornara inócuo pela idade, sem que a vergonha e os remorsos lhe abreviassem os dias, mas foi o ministro da ditadura que se homenageou.

Agora, em 18 deste mês de dezembro senti revolta acrescida pelas palavras e, sobretudo, pela presença da ministra da Justiça, a elogiar o legado do professor que foi governante quando o cargo, ao contrário de hoje, lhe conferia ascendente, de facto, sobre os juízes.

Se um professor competente, como se alegou, merecia a homenagem, Salazar merece a estátua do tamanho da indignidade e dos crimes, e será breve a reabilitação.

O cúmulo foi atingido pelo presidente do S.T.J., a 4.ª figura do Estado, com palavras de devota saudade à «mente brilhante e multifacetada», que viu na homenagem um «claro testemunho da reconciliação e encontro de um país com a sua História». E continuou o panegírico ao ministro que manteve os Tribunais Plenários, enquanto mandava construir palácios da Justiça, numa época em que os processos só eram instruídos se o ministro o permitisse, com remoques aos ministros da democracia por, ao contrário dele, terem os edifícios em más condições.

Antunes Varela foi ministro da Justiça de agosto de 1954 a setembro de 1967, enquanto os juízes dos Tribunais Plenários deixavam agredir os presos na sala de audiências, sob aparente distração, e condenavam cidadãos por delitos de opinião a pesadas penas e medidas de segurança.

Não se terá lembrado o excelso presidente do STJ do assassinato de Humberto Delgado e do silêncio crapuloso de quem lhe merece tamanhos encómios? Terá esquecido o que foi o terror do governo de que fez parte? Sabe de alguma preocupação do ministro com as prisões arbitrárias, as medidas de segurança, as torturas nas prisões e o encobrimento dos crimes de altos dignitários? Antunes Varela pode ter sido mestre do Direito Civil, mas foi um almocreve dos Direitos Humanos e agente da repressão salazarista.

A homenagem foi microcirurgia reacionária e insulto aos democratas; não foi um gesto sem conteúdo político, foi a tentativa de branqueamento da ditadura; não é uma atitude anódina, é uma ofensa a todos aqueles que um Governo, que Antunes Varela integrou, prendeu, torturou, deportou ou assassinou. Uma homenagem a um ministro de Salazar é uma condenação dos que derrubaram a ditadura e uma censura aos que se bateram pelo regime democrático.

A insidiosa afronta, injustiça gratuita e intolerável ofensa do Presidente do STJ deixam a revolta cujas palavras calo, para não ser constituído arguido, mas temo a sua noção de Direitos Humanos, a indiferença perante um regime de terror e a pública admiração por um algoz.

Na deslocação a Coimbra, a ministra da Justiça esteve mal e o presidente do STJ pior. Cuspiram nas campas dos que morreram pela liberdade, exaltaram um cúmplice da ditadura.

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