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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

As algemas de Rui Pinto

por estatuadesal

(Henrique Monteiro, in 28/01/2020)

Henrique Monteiro

Vemo-lo na televisão. Não esconde a cabeça, não parece estar envergonhado, ou arrependido, de algo que tenha feito. Pelo contrário. Mas vemo-lo algemado, como escreveu Pacheco Pereira, como não vemos os maiores criminosos do país, e menos as mediáticas figuras acusadas ou condenadas. As algemas de Rui Pinto são, de certa forma, um retrato da cobardia do nosso país. Na política, na Justiça, na sociedade.

Rui Pinto cometeu vários crimes. É indiscutível que violar a correspondência e a privacidade escondida no computador de cada indivíduo ou empresa é, claramente, um crime. Mas todo o direito se baseia em algo que não podemos esquecer: o conflito de valores. Do mesmo modo que quem mata em legítima defesa não é necessariamente assassino, quem viola a privacidade e com esse ato revela um ato corrosivo da sociedade não pode ser tratado, apenas, como um criminoso de quem não se quer saber as revelações que obteve. Dir-me-ão que ele o fez também em benefício próprio. Não duvido. Mas cabe, igualmente, à Justiça separar o trigo do joio. No caso de Rui Pinto temos muito mais trigo revelado do que o joio que ele representa.

Rui Pinto denunciou no futebol leaks informação a que teve acesso de forma ilegítima e da qual aparentemente se quis aproveitar para sacar dinheiro: uma rede de compadrio, de combinações de compras de árbitros e de fuga ao fisco bastante impressionante. Ronaldo, Messi e outros grandes jogadores espanhóis, mas também franceses e de outras nacionalidades, foram obrigados a pagar milhões de euros às autoridades dos países em que atuavam como futebolistas devido a essas ‘moscambilhas’ que lhes permitia evitar certos impostos. Isto não torna os jogadores menos geniais, nem Rui Pinto menos criminoso. No entanto, em Portugal a Justiça preocupou-se com a invasão dos computadores, mas não com a evasão fiscal e com a desonestidade desportiva (o caso e-toupeira só convence ingénuos). Assim como assim, a preponderância dos grandes clubes na Justiça, como se suspeita no caso do juiz Rui Rangel, é grande e ninguém quer maçadas. França e Espanha colaboraram com Rui Pinto, Portugal pediu a sua extradição da Hungria e engavetou-o. Não fora algumas vozes (Ana Gomes, Francisco Teixeira da Mota, etc.) e o caso estava perdido. Por mim sempre apoiei Ana Gomes nessa luta contra a enormidade que, por cá, se fez ao hacker.

França e Espanha colaboraram com Rui Pinto, Portugal pediu a sua extradição da Hungria e engavetou-o

Que ele pague os erros que cometeu, aceito. Que não se investiguem seriamente os crimes que ele denuncia, é arrepiante.

E vieram os ‘Luanda Leaks’. Sabe-se que os mais de 700 mil documentos, para os quais foi criado um sistema de Inteligência Artificial para os ordenar e classificar, foram fornecidos por Rui Pinto. Aí sim, atuam os poderes públicos e os privados, porque o Estado angolano, de quem fomos e somos subservientes, quer que se investigue. Basta ver que o ‘irritante’ que foi passar o caso de Manuel Vicente para Angola, a fim de o ex-vice-Presidente de Angola ser lá julgado, ainda não teve contrapartida quando o PGR angolano disse querer julgar em Luanda os arguidos portugueses acusados de cumplicidade com Isabel dos Santos. Salvo erro, que me corrigirá quem sabe, Portugal não pode extraditar para Angola cidadãos portugueses; tanto mais que as garantias do sistema de Justiça em Angola não permitem que acreditemos num julgamento justo, por muito que os factos divulgados façam crer na sua culpabilidade.

Rui Pinto, como tantos outros whistleblowers, é culpado de violação da privacidade e de mais uns tantos crimes. Naturalmente, pode argumentar-se que sendo este o crime original, a produção de prova a partir dele é injustificada, porque avalizaria qualquer violação da privacidade em nome da possibilidade de encontrar um crime maior. Por bom que seja o argumento, esbarra noutro: o que está visto, não se pode deixar de o ter sido. O que sabemos, não podemos deixar de saber. E se sabemos, é avisado atuarmos.

Noutras paragens, com outras atitudes, Rui Pinto é louvado por denunciar estes crimes. É precisamente aqui que a atitude das autoridades portuguesas parece o sheriff de Nothingham a perseguir Robin dos Bosques... ou a justiça portuguesa a condenar o advogado Ricardo Sá Fernandes por ele ter microfones ocultos para expor a corrupção de um empresário.

Aquelas algemas dizem tudo. Faremos com Rui Pinto o que mandam os verdadeiros poderes. E esses, infelizmente, estão onde não deviam estar – de Luanda ao Estádio da Luz (e muitos outros locais que por agora desconhecemos).

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