por estatuadesal
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/03/2020)
Miguel Sousa Tavares
20 de Março. Tornou-se mais do que um ritual, mais do que uma dependência. Uma demência: todos os dias, entre o meio-dia e o meio-dia e meia, paro tudo para assistir à conferência de imprensa com a divulgação dos números que dão conta dos danos causados pela passagem do Monstro na véspera. Novos infectados, novos mortos, novos internados, novos internados em UCI, novos, e tão desesperadamente poucos, recuperados. E, imediatamente, faço de cabeça a percentagem que desenhará a célebre curva da morte que fará de cada dia um dia de angústia ou um dia de fugaz alívio. Angústia na segunda, alívio na terça, angústia renovada na quarta, novo alívio na quinta: a curva brinca connosco, o Monstro diverte-se a esconder o seu jogo. E ontem ainda, havia outra vida!
Os alemães são o quinto país com mais casos no mundo, mas os alemães não morrem do vírus. Os alemães têm mais camas de UCI por habitante do que qualquer outro país e fabricam ventiladores. Os alemães não querem ajudar a Itália e nem assim se convencem que para resistir ao terramoto económico que já aí está os países do sul da Europa têm o direito de pagar as mesmas taxas de juro pelos empréstimos a que todos irão recorrer que eles próprios — como é mais do que expectável que suceda numa união monetária e para enfrentar uma crise nunca antes vista e da qual nenhum é responsável. Sim, a Alemanha sozinha aguentará, mas não é certo que a União Europeia sobreviva. Glória aos alemães, coitados dos alemães: vão acabar a comer os seus lindos carros.
A despropósito: se nunca percebi por que razão as pessoas açambarcaram montanhas de papel higiénico para combater o vírus a partir de casa, também não consigo entender a razão pela qual o autarca de Ovar, Salvador Malheiro, resolveu munir-se de uma máscara abaixo do queixo (entretanto abandonada) e de um colete da Proteção Civil para dirigir o estado de calamidade pública no seu concelho. Será para futuro cartaz eleitoral?
21 de Março. O que quereria Francisco Assis dizer no seu texto do “Público” com a “ditadura das forças da natureza” em que viveremos e o lamento de que “o homem subsiste, em grande parte, prisioneiro do mundo natural”? Fui eu que o percebi mal ou foi ele que não percebeu nada do que está a acontecer?
Mais simples de entender é a solução “global” para o ataque planetário de covid-19 e tudo o resto, apresentada pela “historiadora” Raquel Varela, no mesmo jornal: “Só a classe trabalhadora europeia organizada, que é de operários e de médicos, de call-centers e de enfermeiros, ou de professores e motoristas (de pesados), pode oferecer uma saída para a pandemia planetária e para a crise global.” É reconfortante ver que não se esqueceu dos professores, como ela, mas talvez estranho não a ver incluir na solução algumas categorias da “classe trabalhadora europeia”, que, assim de repente, me parecem de considerar: cientistas, investigadores, matemáticos, técnicos de saúde pública, psicólogos, forças de segurança, militares, e, sim, os horríveis decisores políticos. Mas ela deve ter exemplos históricos do que diz. Tanto que, dois dias depois, voltaria à carga com novo texto, ocupando nova página no “Público”. E quatro dias adiante, mais outro, onde desta vez acrescentava os estivadores do porto de Lisboa ao rol dos membros da “classe trabalhadora europeia” de onde só pode vir a solução contra o vírus. Estes, e o seu peculiar sistema sindical tipo familiar (digamos assim...), eu conheci-os brevemente, quando fiz parte de um movimento que há uns anos contestou o projecto de expansão demencial do Terminal de Contentores de Alcântara, roubando quilómetros de Tejo aos lisboetas. Na altura, os estivadores estavam irmanados com a entidade patronal, a Mota-Engil, na defesa de um contrato acabado de assinar com o porto de Lisboa que era das coisas mais infames que alguma vez vi serem feitas em nome do suposto interesse público. São detalhes “históricos”, que, todavia, não apagam o essencial da tese defendida por Raquel Varela no último da sua trilogia de textos da semana que passou, no “Público”: defende ela que o decreto que instituiu o estado de emergência, há dias, faz lembrar os que instituíram o Estado Novo de Salazar ou o Terceiro Reich, de Adolf Hitler. Está-se sempre a aprender com os historiadores.
22 de Março. Sem dúvida que temos de ser solidários para com os que foram apanhados desprevenidos, em trânsito pelo mundo ou fora dos seus países e querem voltar ou, ao menos, desembarcar em algum lado. Mas, um mês depois de verem o que aconteceu com os passageiros dos paquetes apanhados pelas medidas de isolamento quando o coronavírus chegou à China, 15 dias depois de o caos já estar instalado em Itália e vários dias depois de toda a Europa e Portugal incluído ter começado a fechar fronteiras, é completamente irresponsável — dos passageiros e das agências — iniciar cruzeiros turísticos no Brasil com destino à Europa e depois ficar a suplicar que alguém os deixasse desembarcar. Assim como é quase criminoso que tenha havido portugueses a partir para férias — em Espanha, em Itália (!), no Peru ou em Bali — quando todo o mundo já estava em estado de excepção e depois ficar a mandar vídeos para cá com apelos lancinantes e acusações de que o Estado português os tinha abandonado nas suas férias lá longe. É incrível saber que a linha telefónica de emergência montada pelo MNE para assistir no repatriamento dos mais de 4 mil portugueses no estrangeiro a quererem voltar estava a ser ocupada a 75% por chamadas de portugueses a perguntarem se poderiam ir passar as férias da Páscoa no estrangeiro! Estes turistas acidentais deviam pagar bem caro o custo do seu repatriamento.
23 de Março. No “Público” de hoje, o professor de Epidemiologia, Manuel Carmo Gomes, assina um texto profundamente pessimista sobre a evolução do Monstro. A sua conclusão é arrepiante: a segunda vaga da ofensiva é quase inevitável e a única defesa eficaz é mantermos os velhos fechados em casa durante um ano ou ano e meio, até haver uma vacina. Entrevisto-o para o “Jornal das 8” de segunda-feira, da TVI, e pergunto-lhe se isso não é uma forma de eutanásia social, que consiste em afastar os velhos dos filhos, dos netos, da vida em comunidade, das ruas, do ar livre, numa espécie de prisão domiciliária, durante um longo tempo do pouco tempo de vida que já lhes resta. “Não há outra forma de parar a doença”, responde-me. Com o todo o respeito para quem olha para este susto com o olhar do epidemiologista e não do sociólogo ou do psiquiatra, esta não é uma resposta para a doença: é outra doença. Acabaremos a ver os velhos a serem enxotados dos jardins, das praias, das ruas, quando se atreverem a pôr a cabeça de fora. No sul de Espanha, dois dias depois, uma coluna de ambulâncias que evacuava velhos de um lar, foi apedrejada e atacada com explosivos ao chegar a uma cidadezinha onde iriam ser realojados. Por enquanto, o Monstro apenas infecta humanos, não animais. Mas em breve terá o dom de transformar os humanos nos piores dos animais. Um tipo chamado Donald J. Trump já deu o mote.
Por enquanto, o Monstro apenas infecta humanos, não animais. Mas em breve terá o dom de transformar os humanos nos piores dos animais. Um tipo chamado Donald J. Trump já deu o mote
No mesmo espaço da TVI, entrevisto António Costa. Logo de entrada, pergunto-lhe o que falta: testes, camas, ventiladores, material de protecção para o pessoal clínico? Responde-me que, até à data, não faltou nada nem prevê que venha a faltar. Pergunto-lhe, de seguida, qual é o ponto de saturação do SNS, quando e com quantos doentes o atingiremos. Responde que confia em que nunca o atingiremos, que nunca perderemos o controlo da situação. Nos dias que se vão seguir, o primeiro-ministro irá ser massacrado por estas duas respostas. “Está a mentir!”, gritam as redes sociais e vários médicos e enfermeiros, reportando da tão falada “linha da frente” e alimentando as redes sociais. “É falso”, proclamam a Ordem os Médicos e a dos Enfermeiros: falta tudo. Fico a pensar nisto: temos 140 doentes internados, 60 em cuidados intensivos — camas não faltam com certeza e muitas mais estão a ser disponibilizadas, ao mesmo tempo que os outros doentes evitam ir aos hospitais e às urgências. Os testes e os ventiladores são neste momento objecto de um mercado planetário ocupado por piratas, onde nenhum contrato de fornecimento é respeitado. Se o pessoal médico está ou não desprotegido, não sei, porque não estou lá para ver. Mas, dois dias depois, o director clínico do Serviço de Infecciologia do Hospital Curry Cabral (o hospital de referência nesta crise), Fernando Maltez, declara tranquilamente: “Até ao momento, não nos tem faltado nada nem prevemos que nos venha a faltar nos tempos mais próximos.” Percebo perfeitamente que quem está nos hospitais a receber os doentes esteja assustado — no lugar deles, eu também estaria, e muito. Mas para enfrentar um combate que se antevê duro, a tranquilidade é melhor conselheira do que a histeria. Não temos tudo o que precisaríamos para uma crise desta dimensão? E qual é o país que tem? Qual é o serviço público de saúde que pode estar preparado, e a que custo, para uma crise desta natureza ou para as consequências da queda de um meteorito no planeta Terra? Sinceramente, não percebo: ficariam todos mais satisfeitos se António Costa tivesse dito: “Olhe, falta tudo e não estamos preparados para nada; vamos entrar em ruptura e vai ser um caos, salve-se quem puder”?
25 de Março. Para o que não estávamos preparados, e julgo que devíamos estar, foi para ter uma estratégia planeada para a bomba-relógio representada pelos lares de terceira idade, onde estão acantonados 100 mil velhinhos que são simultaneamente as principais vítimas e os principais difusores do vírus. Esqueceram-se de pensar nisso e neles, e agora actuamos à deriva.
26 de Março. No “Corriere della Sera”, o escritor e jornalista italiano, Antonio Scurati, escreveu isto sobre a sua geração, a que nasceu nos anos 70 do século passado: “Fomos a geração mais afortunada da história da Humanidade... Ter nascido em Itália no princípio dos anos 70 deu à nossa geração, por pura casualidade, a fracção da humanidade mais próspera, mais saudável, mais segura, mais protegida, com maior esperança de vida, mais bem vestida, alimentada e cuidada que alguma vez pisou a face da Terra. Agora, uma vez alcançado o ponto mais alto da nossa existência, vemo-nos postos à prova. Estaremos à altura?” Eu não tenho dúvida que sim. Na Roma Antiga — fundadora da mais extraordinária civilização que o mundo alguma vez conheceu, a civilização mediterrânica — os bárbaros ficavam a Norte e o mundo que valia a pena ser vivido ficava a Sul. A Itália sobreviverá. E nós com ela.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Sem comentários:
Enviar um comentário