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domingo, 17 de maio de 2020

A pandemia neofascista

17/05/2020 by João Mendes 1 Comment

JB

Cartoon: Carlos Latuff

Nelson Teich, apesar do apelido que rima com Reich, não sobreviveu um mês no Ministério da Saúde de Bolsonaro. Entrou a 17 de Abril, para substituir Luiz Henrique Mandetta, demitiu-se a 15 de Maio, para ser substituído por (mais) um militar. O anterior foi corrido por insistir na importância do distanciamento social. Este demitiu-se por se recusar a recomendar a cloroquina, e por discordar da equiparação de salões de beleza e ginásios a serviços essenciais. Pobre Ministério da Saúde brasileiro, onde o conhecimento científico é enxovalhado e espezinhado, e o autoritarismo ignorante de Bolsonaro é quem mais ordena.

O senhor que se segue é o general Eduardo Pazuello, um militar de carreira sem qualquer tipo de formação na área da saúde. Contudo, Pazuello é detentor da melhor das qualidade para integrar o actual governo brasileiro: é amigo pessoal de Bolsonaro. Tão amigo que afirmou mesmo estar disponível para acatar qualquer medida imposta directamente pela presidente para a área da saúde. Com obediência cega e sem levantar questões.

Nunca, como nestes dias estranhos que vivemos, fiquei tão grato por ter nascido numa democracia consolidada, inserida no único espaço do planeta onde um grupo considerável de democracias decentes coabita da forma mais humana, livre e harmoniosa que foi dada a conhecer ao Homem, pese embora os nossos múltiplos defeitos, corrupção, paraísos fiscais, desigualdades que poderiam facilmente ser drasticamente reduzidas e refugiados a morrer no Mediterrâneo.

Fora desse espaço, porém, existem todos esses defeitos e mais alguns. Como a falta de estruturas e cuidados básicos de higiene, salubridade e saúde, a censura, o terrorismo, a violência racial, países inteiros comandados por meia-dúzia de mafiosos, níveis de poluição estratosféricos, genocídios, totalitarismo, fome e miséria. Não é à toa que tantos fogem para cá. E ver o Brasil, país irmão e amigo, mergulhado neste nível de hostilidade polarizada, de fundamentalismo religioso e ideológico e de loucura, causa-me uma tristeza muito grande.

E o que se passa em certos países, como o Brasil, e em menor escala nos EUA, deve ser encarado com preocupação. Há uma linha vermelha que está a ser cruzada, na periferia da democracia, e isso, mais do que qualquer teoria da conspiração sobre planos secretos para dominar o mundo ou islamizações à bruta, deveria fazer soar todos os alarmes sobre as cabeças daqueles que se revêm no modo de vida europeu, com as suas idiossincrasias e o maior nível de liberdade e dignidade por metro quadrado que alguma vez se viu no planeta Terra.

A verdadeira ameaça não são uns milhares a fugir da miséria total. A ameaça é essa gente que quer usar a democracia para acabar com ela. Que usa o “patriotismo” e o nacionalismo para alimentar uma lógica de conflito bem antiga, com os resultados que todos conhecemos. Que agita o fantasma da globalização, quando na verdade estão ao serviço do capitalismo mais podre, corrupto e desumano. Que tem gerido a pandemia com o brilhantismo a que todos temos assistido, colocando os interesses de meia dúzia à frente do bem estar de todos. Não é à toa que até Boris Johnson, o enfant terrible da Europa civilizada, recuou na sua estratégia de combate à pandemia. Até ele sabe que romper o cordão sanitário que nos separa dos autocratas seria um erro histórico e imperdoável.

A democracia precisa dos democratas. De todos os democratas, sejam eles socialistas, liberais ou conservadores. A ameaça está ao virar da esquina, mais ou menos dissimulada, e não podemos vacilar. Sejam os neofascistas assumidos, sejam os falsos democratas que clamam por câmaras de gás, pendurados no partido que lhes garante o poder, e não no que representa a sua matriz ideológica, todo o cuidado é pouco com a ascensão desta nova e perigosa extrema-direita. O alerta de Karl Popper, sobre o imperativo ético, moral e civilizacional de não tolerar a intolerância, está mais actual que nunca. Ignorá-lo poderá ser o princípio do fim do nosso modo de vida. Não podemos deixar que isso aconteça.

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