Posted: 10 May 2020 03:41 AM PDT
«A covid-19 tornou-se num campo de batalha na cena internacional. À emergência sanitária somou-se a emergência económica. A seguir, a pandemia ganhou uma terceira dimensão: o conflito sino-americano passou das tarifas para o vírus. A Administração Trump acusa a China de ser responsável pela pandemia. Pequim explora o seu êxito no controlo da covid-19 e lança uma agressiva diplomacia para lavar a sua imagem e alargar a sua influência, designadamente na Itália. Biliões de pessoas esperam ansiosamente por uma vacina, mas esta mesma vacina corre o risco de se tornar em mais uma arma tóxica na guerra da pandemia.
Escrevia-se há três meses, quando o coronavírus ainda mal começava a assustar os italianos e muitos respondiam com um racismo antichinês: “A grande dúvida é saber se a epidemia do coronavírus se manterá como crise sanitária internacional ou se vai transformar-se num fenómeno geopolítico, susceptível de alterar os equilíbrios do sistema internacional. O coronavírus surge como um ‘cisne negro’, acontecimento imprevisível e raro que, combinando-se com outros factores, pode dar lugar a inconcebíveis mudanças. Tudo depende da expansão ou contenção da epidemia ¬e dos seus efeitos na nossa vida quotidiana ou no comércio internacional.” E, em Fevereiro, não tínhamos a ideia da dimensão trágica que a pandemia iria alcançar.
A China começou por se vangloriar da superioridade do seu regime político e dos seus métodos no confronto da doença - uma vitoriosa “guerra popular.” Pequim terá ganho a batalha da opinião interna, mas é improvável que vença a internacional, apesar do esforço em se apresentar como “potência generosa” que auxilia os outros. Mas a batalha das máscaras não lhe correu muito bem. E sofre um inesperado desaire: tencionava proclamar em 2021, no centenário do Partido Comunista Chinês, a duplicação do seu PIB numa só década. O coronavírus estragou a festa.
A Administração Trump começou por saudar a “transparência” de Pequim. Quando a covid-19 atingiu a América, Trump virou a agulha e respondeu com a “revelação” de que o novo coronavírus teria nascido num laboratório de Wuhan. O coronavírus passou ser o “vírus chinês”. Pequim teria mentido em toda a linha. Depressa a guerra das tarifas comerciais se prolongava na novíssima “guerra do vírus”.
Efeito na ordem mundial
O veterano Joseph Nye, o cientista político que criou o conceito de soft power, escreve na Foreign Policy que “o coronavírus não mudará a ordem mundial”. Apela à cooperação. E adverte: “Se a política americana continuar neste caminho, o novo coronavírus apenas acelerará a tendência para o populismo nacionalista e para o autoritarismo. Ainda é muito cedo para predizer uma viragem geopolítica que altere fundamentalmente a balança de poder entre os Estados Unidos e a China.”
Na Foreign Affairs, o australiano Kevin Rudd, antigo primeiro-ministro e hoje professor de Geopolítica, especialista na China, faz uma interessante abordagem. Económica e militarmente, Pequim é mais fraca que os EUA. Mas tem sabido manipular habilmente a percepção do seu poderio, ao ponto de convencer turcos e alguns europeus de que o coronavírus ilustra a marcha para a supremacia chinesa. “Diz-se que a percepção é a realidade. Mas, na realidade, não é.”
Aponta três factores que moldarão a ordem mundial: “Mudanças na capacidade militar e na força económica das grandes potências; o modo como estas mudanças serão percebidas no mundo; e as estratégia escolhidas. Com base nestes três factores, a China e os Estados Unidos têm razão em se preocupar com a sua influência mundial pós-pandemia.”
A América é um problema. “A caótica gestão da Administração Trump deixa uma indelével impressão de um país incapaz de lidar com as suas próprias crises. (…) Os EUA parecem emergir [da pandemia] como uma comunidade política mais dividida do que unida, como seria normal numa crise desta magnitude. A contínua fragmentação do sistema político americano é mais um forte constrangimento para uma liderança global americana.”
A Administração Trump agravou o problema “ao enfraquecer a estrutura de alianças dos EUA (que na lógica estratégica convencional seria central para manter a balança do poder em relação à China) e sistematicamente deslegitimar as instituições multilaterais (criando um vazia para a China preencher). O resultado é um mundo crescentemente disfuncional e caótico.”
O teste da vacina
Em Abril, o jornal americano Politico advertia sobre o receio de que Trump incitasse a uma “rixa global” sobre a vacina. “A recente corrida às máscaras, luvas e outras protecções pessoais dá um instrutivo exemplo. Imaginem agora, dizem especialistas e altos funcionários, uma similar competição para obter doses de vacinas: poderia agravar a crise sanitária, deixando espalhar o vírus por muito tempo, devastando os países menos equipados para o combater.”
Lembramo-nos de que Trump tentou negociar com um laboratório alemão o “exclusivo” de uma virtual vacina. Também Pequim não está interessada na cooperação sobre a vacina. Aposta em fazer a sua, tal como Trump. A tentação de controlo da vacina é muito forte.
A comunidade científica internacional continua a colaborar na investigação sobre a vacina. Mas este esforço comum pode não ser partilhado pelas potências concorrentes. Se a Europa surge como pólo dinamizador da cooperação, é incerto o que se passará com os Estados Unidos e com a China. Quem chegar primeiro à vacina comandará a produção e, sobretudo, a distribuição. Seria uma incalculável vantagem política, económica e de prestígio. Uma vacina chinesa seria uma inédita vitória num terreno em que a América sempre foi líder. Criaria uma percepção mundial análoga à do Sputnik soviético: a nova potência que começa a superar a América.
O benefício político da vacina é óbvio. No plano interno, permitiria imunizar prioritariamente a sua própria população, o que além das vidas salvas seria uma importante poderosa arma económica na fase pós-covid.
Esta corrida está lançada e decidirá se triunfa uma lógica nacionalista ou uma lógica cooperativa. A vacina será o grande teste. A decisão muito pesará sobre o futuro modelo das relações internacionais.
No mundo da pandemia, destacam-se três pólos: Estados Unidos, China e Europa, cada um com as suas forças e fraquezas. Será a Europa capaz de exercer uma influência global de modo a impor a cooperação numa questão de vida ou morte?»
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