por estatuadesal
(Ana Sá Lopes, in Público, 04/05/2020)
Alguém arrisca passar agora, com o risco do vírus, pelos estágios iniciais do estabelecimento de uma relação?
E agora como é? Fazemos o quê? Olhamos para a mudança de “estado de emergência” para “calamidade” como uma possibilidade de esperança, uma coisa incrível quando entre dois palavrões horrorosos venha o diabo e escolha. Chegou agora, enfim, a possibilidade de nos reconciliarmos com algumas coisas banais que o longo confinamento varreu das nossas vidas.
— O que me apetece é beber um café na rua.
A maioria dos nossos desejos será tão banal como o desta minha amiga. Beber um café na rua passou a ser um bem raro, apenas disponível em algumas padarias. Um café. Vamos lá a ver: é só um café. E no entanto a sua falta revelou-se para muitos de nós, por muitas máquinas expresso que tenham inundado o mercado, desagradável de suportar.
Queremos regressar a uma normalidade, reconhecer alguma parte do mundo que era nosso e o vírus implodiu. Mas o novo normal será anormal, já sabemos. Não poderemos abraçar, quando é que poderemos abraçar? Daqui a um ano e meio com vacina? Sem a possibilidade de um abraço, o nosso mundo encolhe e gela. Claro que sabemos viver encolhidos. E a felicidade também vem de se fazer o que, a cada momento, é o mais certo. E encolher-nos é agora a nossa possibilidade. Mesmo um bocado gelados, avancemos.
Acho que em todo este tempo demos por nós a fazer perguntas antes inimagináveis uns aos outros. Eu dei. Aqui há dias:
— Tu abraças o teu filho?
— Não, ele não gosta de abraços. Mas toco-lhe.
— Tu desinfectas as compras?
Alguns meus amigos desinfectam as compras. Outros não. Eu também não. Mas não dou abraços. Não toco em ninguém e sabe Deus o que isso é doloroso. Mas agora, podendo ir ver o mar e a sua infinitude, as coisas vão ficar melhores.
O que vai acabar é o amor romântico ou a sua possibilidade. Falo dos novos amores — a quarentena demonstrou como é maravilhoso ter um bom casamento ou similar, para todos os que tinham esquecido ou desprezavam o facto. Um conselho de amigo: tratem dele, do vosso casamento, porque já não há mais.
Ah e tal o amor não acaba, respondem-me. Não? Alguém arrisca passar agora, com o risco do vírus, pelos estágios iniciais do estabelecimento de uma relação? Quem desinfecta compras não vai beijar estranhos. A máscara vai ser uma nova burka usada por razões sanitárias — vai proteger-nos da covid-19 e do amor romântico. O vírus da SIDA tinha formas de protecção. Aqui não há. O álcool gel não é para ser usado na boca e não consta que exista alguém disponível para tomar banho em álcool gel antes de tocar em alguém que não conhecia antes da quarentena.
Vamos então recomeçar como se nos faltasse uma parte. Mas recomeçamos. E apesar do muito que o vírus nos veio retirar, a tendência do humano para a busca da felicidade consegue ser comovedora. Bebamos o café.
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