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sábado, 2 de maio de 2020

Sonhar é grátis

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 01/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Vamos imaginar que, em Novembro, Trump e aquela múmia paralítica que faz de vice-presidente, Mike Pence, são dispensados pelos americanos de os continuarem a governar durante mais quatro anos; que Vladimir Putin deixa de se ocupar tanto com conspirações, perseguições aos adversários internos e exibicionismo do seu ego; que Xi Jinping e a nomenclatura chinesa reconhecem que o sistema de poder do PCC, fundado no autoritarismo, centralismo e secretismo, evitou que o mundo fosse avisado a tempo da emergência de um novo vírus letal, tornando a sua difusão planetária incontornável e as subsequentes consequências económicas devastadoras para todos. E, enfim, imaginemos ainda que alguns subfigurantes, não mais recomendáveis mas menos importantes — Bolsonaro, Duterte, das Filipinas, Orbán, da Hungria, Erdogan, da Turquia, Daniel Ortega, da Nicarágua, os Queridos Kim, da Coreia do Norte, Nicolás Maduro, da Venezuela, alguns fantoches africanos, o assassino príncipe saudita, o carniceiro sírio ou o aldrabão israelita —, saíam de cena ou eram obrigados pela comunidade interna­cional a portarem-se como gente decente durante uns tempos.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

E, então, vamos imaginar que, sob a égide das Nações Unidas, do Banco Mundial, do FMI e de agências como a OMS, a FAO e a UNESCO, era lançado um plano de recuperação económica à escala global baseado nos seguintes pontos: apetrechamento dos serviços de saúde públicos; plano de emergência contra a fome e a escassez de água; prioridade à recuperação dos postos de trabalho perdidos; desenvolvimento económico assente no combate às alterações climáticas, privilegiando as indústrias, sectores e actividades não poluentes; investimento na diminui­ção significativa das desigualdades económicas regionais e sociais; apoio determinante ao sector cultural e à imprensa de referência. Acordados estes princípios, passar-se-ia às medidas concretas:

— lançamento de um imposto extraordinário sobre 50% dos lucros nos próximos três anos das mil maiores empresas do mundo. Imposto este cuja receita reverteria metade para o FMI, que a utilizaria no finan­ciamento da recuperação económica dos países, de acordo com os critérios acima definidos, e metade ficaria nos países de origem das empresas, sendo obrigatoriamente aplicada nos sistemas de saúde, no desenvolvimento de energias limpas, agricultura sustentável e reconversão das indústrias poluentes;

— moratória de cinco anos acordada entre os dez maiores produtores e vendedores de armas, durante os quais esses países se comprometiam a não produzir ou comercializar qualquer nova arma, nuclear ou não nuclear, navio, avião, canhão ou tanque. O dinheiro poupado com essa moratória seria integralmente entregue à ONU, que, através das suas várias agências, o aplicaria no combate à fome, à distribuição de água, à eliminação das desigualdades, ao fortalecimento dos sistemas de saúde, ao fomento do combate às alterações climáticas e à promoção da cultura e da informação séria;

— ‘imposto’ particular em espécie sobre a China e a favor de África, reconhecendo quer a particular responsabilidade da China na pandemia do coronavírus quer a particular vulnerabilidade de África para a enfrentar. O imposto consistiria na doação ou financiamento de hospitais e respectivo apetrechamento, incluindo camas, salas de operações, UCI, ventiladores, etc., em quantidade minimamente suficiente;

— tributação extraordinária e à escala global sobre todas as empresas multinacionais cuja dimensão de mercado seja considerada demasiado grande, a ser efectuada em todos os países de actuação das empresas e a uma mesma taxa.

— idêntica tributação extraordinária sobre combustíveis fósseis, cuja receita os Estados só poderiam aplicar em medidas de descarbonização;

— limitação do número de voos consentidos diariamente no planeta, distribuindo os direitos de voo pelos países em proporção com a população e o grau de CO2 emitido;

— estabelecimento de uma lista de locais considerados absolutamente essenciais para a conservação da biodiversidade do planeta e para o controle do aquecimento global, elaborando uma Carta das Reservas Naturais do Planeta Terra, as quais permaneceriam intocáveis, sendo os países cujas fronteiras as integrassem compensados financeiramente todos os anos pela sua não exploração;

— medidas concertadas e eficazes contra as offshores e as empresas sediadas em offshores, começando logo pela impossibilidade de recorrerem a quaisquer apoios estatais ou outros e de participarem em concursos internos ou internacionais, e, dentro da UE, começando por pôr fim aos seus membros que funcionam como offshores: Holanda, Luxemburgo, Malta e Irlanda (não esquecendo a ilha da Madeira).

O que resultaria daqui? Desde logo, triliões de dólares, de euros, como jamais visto ou imaginado. Triliões destinados a uma causa comum e com objectivos comuns e concretos. Resgatar-nos a todos desta crise planetária de saúde e de sobrevivência económica. Deixar a Humanidade mais saudável, mais próspera, mais segura, mais justa, mais informada e menos indiferente à sorte alheia. E, simultaneamente, começar a limpar o planeta em que vivemos e que vimos paulatinamente exaurindo ano após ano.

Tenho lido textos de variada e bem-intencionada gente defendendo o contrário: que nem o vírus tem alguma coisa a ver com a forma predadora como tratamos a Natureza nem a recuperação económica, que todos desejamos seja tão rápida quanto possível, se poderá dar ao luxo de se preocupar minimamente com questões ambientais. E li até, do Henrique Raposo, aqui, uma versão intermédia e verdadeiramente possessa: a de que o vírus tinha vindo da Natureza, sim, da “natureza fascista”, a qual, segundo percebi, tinha de ser vergada e derrotada pela superioridade do Homem. Contra o fascismo, marchar, marchar!

Ora, meus caros, duas coisas: factos e oportunidade. Quanto aos factos, não há como ver para perceber. Tal como já aqui escrevi há tempos, contrariando os arautos do olival superintensivo de Alqueva, aconselho-vos, agora que vamos todos ter férias cá dentro, a darem um passeio até lá: se alguma vez viram um olival ou uma paisagem de montado alentejano, não vão reconhecer aquilo. Aquilo, que o Governo tanto apoia, não é nem agricultura nem paisagem natural e não vai acabar bem, basta ver. Mas prolonguem o passeio e vão ver os eucaliptais da serra da Ossa ou da serra de Monchique, que já são antigos: quando estiverem a olhar para aquela Natureza literalmente morta, deserta de qualquer sinal de vida, compreenderão por que razão aquilo já não tem nada a ver com serras, mas apenas com um estaleiro de incêndios. Está dito, está escrito, está provado há muitos anos que qualquer monocultura intensiva é um desastre ecológico, paisagístico e humano. Quando a terra fica exangue, quando desaparecem todos os animais e humanos, quando pega fogo, a culpa é da Natureza? Exemplos destes poderia dar dezenas, desde o que era a paisagem do fundo do mar no Algarve há 30 anos e o que é hoje, o que era voar sobre a Amazónia de noite há 30 anos e já então ver dezenas, centenas de fogos a abrirem feridas de morte no coração da mata. Dou apenas um número que, por sua vez, dá a noção das coisas: morreram de covid 4600 chineses, mas, nos dois meses em que a economia chinesa esteve quase parada, segundo um estudo da Universidade Stanford, a ausência de poluição atmosférica nos céus da China poupou quatro vezes mais vidas de chineses do que aquelas que o vírus levou.

Quanto à oportunidade, ela é simples: aproveitar ou não aproveitar este terramoto económico sem precedentes em todo o mundo para tentar regressar começando a fazer diferente. Há anos, há décadas, que se fala nisso, mas nunca houve ocasião para desacelerar, porque os governos tinham sempre eleições para ganhar e os governados tinham sempre mais para reivindicar. Agora foi mais do que uma ocasião: esbarrámos contra uma parede. Nunca mais teremos uma oportunidade como esta para fazer diferente.

Eu sei que tudo o que escrevi acima é uma utopia. Sei que raramente os grandes do mundo são gente de bem e, mesmo quando o são, há qualquer coisa no poder que parece que torna sempre mais importante conservá-lo do que exercê-lo em nome de um ideal de bem. Por vezes, o apelo para o mal vem de baixo e o poder não lhe resiste ou até aproveita para o cavalgar: é assim que gente tão desprezível como um Trump ou um Bolsonaro chegam ao poder.

Nem sequer apregoando o bem, mas ostensivamente oferecendo a patifaria e a cruel­dade como programa politico — e há momentos na vida dos países em que o povo gosta. Sei, pois, que a minha utopia não tem qualquer viabilidade. Mas, com muito menos ambição, alguma coisa de diferente pode e deve ser feita. Seríamos imensamente estúpidos se achássemos que tudo pode voltar a ser igual sem consequências.

2 A generalidade da imprensa adorou o discurso de Marcelo no 25 de Abril. Eu não. Se ele queria intervir na polémica levantada pelas celebrações na Assembleia (que tinha razões válidas de ambos os lados), deveria ter sido para unir o que a ridícula postura de caça-fascistas de Ferro Rodrigues tinha dividido e jamais para se colar a um presidente da Assembleia da República que tem feito tudo o que alcança para promover o Chega e desprestigiar-se a si próprio. Mas o 25 de Abril foi apenas um pretexto: o que Marcelo fez foi o discurso de lançamento da sua recandidatura. Encostando-se descaradamente ao eleitorado do PS e acenando ao do BE.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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