Posted: 24 May 2020 03:10 AM PDT
«É comum dizer-se que os economistas apenas estudam Economia e nada sabem de História, Antropologia, etc. Ainda assim, têm opiniões convictas sobre tudo. Desde alterações climáticas a modelos epidemiológicos. Como economista, encarno esses defeitos. Há uma vantagem: somos frequentemente convidados para tratar de assuntos que não são da nossa área e, à custa disso, aprendemos coisas. Talvez por isso, fui há uns anos convidado para arguir uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior.
O autor, José Carlos Alexandre, do Instituto Politécnico da Guarda, escreveu sobre a teoria da espiral de silêncio, de Elisabeth Noelle-Neumann, uma cientista política alemã. A tese central é simples: quem se sente em minoria tem tendência a manter-se em silêncio, deixando o espaço público entregue à opinião maioritária (reforçando a ideia de que se está mesmo em minoria, o que alimenta o silêncio, etc.). Que circunstâncias proporcionam essa espiral? Para Noelle-Neumann, o medo do isolamento é a força que a põe em marcha. O medo do isolamento é maior do que o de estar errado e é alimentado pela forma como a sociedade trata os que desafiam o consenso. Conjugado com a ameaça do isolamento e a perceção de que se está em minoria, o medo do isolamento leva ao silêncio.
Com a covid-19, criaram-se as condições para uma espiral de silêncio. Não só o assunto tem uma forte carga moral, o que leva a que, em vez de se discutir o que está certo ou errado, se discuta o bem e o mal, como a comunicação social se mostrou mais empenhada em dar conselhos do que notícias. Quantas vezes nos explicaram que éramos agentes de saúde pública e que tínhamos de proteger os outros, em especial os velhinhos? Que dizer das homilias de Rodrigo Guedes de Carvalho nos telejornais da SIC ou das “reportagens” sobre a Suécia que tantas vezes nos informaram de (inexistentes) volte-faces?
Quando Jorge Torgal, especialista em saúde pública, defendeu que as escolas permanecessem abertas e comparou a covid a uma gripe mais violenta, foi linchado no altar das redes sociais e da opinião publicada. Uma das premissas de Noelle-Neumann, a ameaça do isolamento, funcionou em pleno.
Jorge Torgal terá sido o primeiro, mas não foi o único. Fosse nas redes sociais, fosse nos jornais ou televisões, quem emitisse uma opinião ligeiramente ao lado era imediatamente vilipendiado; quem apontasse para a Suécia era imediatamente colado a Bolsonaro; quem lembrasse a destruição da economia era acusado de ser materialista e não querer saber das pessoas e das mortes. Havia quem fosse para a rua tirar fotografias às pessoas que estavam na rua para as denunciar nas redes sociais.
Eu, que, com a exceção de manter as escolas fechadas até setembro, concordei com as principais opções do Governo, senti falta das minorias. Ainda por cima, a teoria dominante estava cheia de pontas soltas. Como é que em abril ainda se falava num pico para maio quando todos os dados indicavam que o mesmo já tinha ocorrido na última semana de março? A ausência de opiniões minoritárias empobrece-nos. Sem ser desafiada, não há nenhuma garantia de que a opinião dominante seja a que tem melhores argumentos. Passa a ser uma mera materialização da tirania da maioria de Tocqueville.
Essa diversidade existe em economia. É fácil encontrar nas colunas de opinião economistas keynesianos, marxistas ou hayekianos. Entre os economistas, a diversidade é tanta que é fácil encontrar alguns que nada sabem de economia. No entanto, num assunto tão novo e sobre o qual se sabe tão pouco como a covid, era raro haver opiniões dissonantes. No mundo dos opinion makers regulares, a principal exceção terá sido José Miguel Júdice, que, obviamente, não tem nenhuma espécie de autoridade académica para opinar sobre o vírus. Já o credenciado Pedro Simas, em diversas entrevistas foi-nos suavemente sugerindo que o confinamento geral talvez não fosse a melhor forma de combater o vírus.
Na minha bolha das redes sociais, as principais vozes dissonantes foram as de Henrique Pereira dos Santos (arquiteto paisagista), Paulo Fernandes (especialista em fogos florestais), André Azevedo Alves (cientista político), Rodrigo Adão Fonseca (especialista em ciber-risco), Pedro Santa Clara (economista) e André Dias. Este tem credenciais académicas na área e, talvez por isso, foi quase acusado de ser um psicopata. Foi desafiado a escrever nos jornais e, compreensivelmente, recusou, explicando que não estava para ser linchado. O meu artigo no Expresso online de 6 de abril era uma contestação às teorias de André Dias. Não o nomeei, porque ele evitava a exposição nos jornais. Entretanto já escreveu um artigo no jornal online “ECO”.
A todas as vozes dissonantes, quer as que referi quer outras, tiro o meu chapéu. Graças a elas, a espiral de silêncio que nos envolveu não foi ainda maior.»
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