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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Abutres e estupefactos

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 18/06/2020)

Realmente não é fácil de entender. Não é este o mesmo país em que toda a despesa pública deve estar sujeita a mecanismos rigorosos de escrutínio, incluindo nalguns casos em termos de fiscalização prévia pelo Tribunal de Contas? Não é este o mesmo país em que o artigo 167.º, n.º 2 da Constituição proíbe a introdução de legislação que implique aumentos de despesa ou diminuições de receita face ao que consta do OE? Não é este o mesmo país em que cada milímetro de intenção de despesa pública é sujeita aos mecanismos do semestre europeu e às consultas no âmbito do Artigo IV do FMI, que mapeiam a sustentabilidade da dívida do Estado, incluindo responsabilidades contingentes?

Então como é que pode existir um contrato que, direta ou indiretamente, compromete o Estado com responsabilidades contingentes (pouco contingentes, na verdade, visto que se concretizam sempre) de milhares de milhões de euros e que esse contrato não seja conhecido por ninguém? O Parlamento só agora o recebeu e pelos vistos com partes em falta; o Presidente da República parece desconhecê-lo; e a generalidade dos portugueses, obviamente, não lhe pôe a vista em cima exceto através de fugas parciais para a imprensa que, apesar de tudo, constituem neste caso o único resquício de mecanismo de controlo democrático.

Há mesmo muito bons motivos para ficarmos estupefactos com toda esta história, mas a estupefação não devia ser de agora. A estupefação devia começar com o facto de ter sido possível a Sérgio Monteiro, Maria Luís Albuquerque e Pedro Passos Coelho organizarem uma negociata obscura – porque realmente não pode ter outro nome – que deixa nas mãos dos gestores e acionistas do banco o controlo sobre a possibilidade de irem buscar milhares de milhões de euros aos bolsos dos portugueses, recompensando-os tanto mais quanto pior o banco for gerido.

A estupefação devia continuar no facto desta negociata ter sido assinada com uma empresa de fachada – nem sequer com o próprio fundo abutre, mas com uma empresa criada para este efeito, no final de uma longa cadeia de holdings e offshores, à qual será impossível ir buscar de volta qualquer cêntimo de pagamentos entretanto realizados. Devia passar pela absoluta vergonha de Sérgio Monteiro ter sido pago principescamente com dinheiros públicos - 30 mil euros neste caso e meio milhão de euros no total das várias assessorias, tudo pago pelo Banco de Portugal – para organizar esta espoliação ao bolso dos portugueses. E devia estender-se ao facto de tudo isto ter sido feito sem que o contrato fosse minimamente conhecido ou escrutinado, impedindo que os seus responsáveis fossem pelo menos punidos no plano eleitoral por aquilo que, na melhor das hipóteses, é de uma incompetência a raiar o criminoso.

A venda do Novo Banco é um caso vergonhoso que ficará para a História pelos piores motivos, cobrindo os seus responsáveis de um opróbrio indelével. Mostra bem porque é que é inaceitável que o Estado assine contratos secretos: porque impede o necessário escrutínio, porque promove a corrupção e a má gestão e porque lança o descrédito sobre as instituições da democracia.

Não sendo eu jurista, sugiro aos deputados que verifiquem bem a legalidade da falta de publicidade deste contrato. E se estranhamente for legal, sugiro que legislem para que passe a deixar de sê-lo. Neste caso já não nos livramos de termos sido coletivamente lesados por abutres depois de nos terem vendado os olhos. Ao menos que tal não possa voltar a acontecer.

Errata acrescentada às 15h31, a pedido do autor:

O contrato de venda do Novo Banco à Lone Star foi assinado em 18 de outubro de 2017, durante o primeiro mandato de António Costa enquanto primeiro ministro, cabendo as responsabilidades diretas pelo mesmo a Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, e Sérgio Monteiro, responsável pela operação. Independentemente de outras responsabilidades políticas que possam ter no âmbito do desastroso processo de resolução do BES, Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque não são responsáveis por este contrato lesivo e obscuro. Por este erro, penitencio-me perante os visados e os leitores.

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