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terça-feira, 9 de junho de 2020

Somos todos loucos aqui

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 06/06/2020)

Pedro Santos Guerreiro

Se não sabes para onde vais, não interessa que caminho escolhes, respondeu a Alice o gato das garras grandes e muitos dentes. António Costa e Silva é o gato de Cheshire do Governo: o primeiro-ministro pediu-lhe um plano de futuro, o que signi­fica que não tem plano nenhum. Haveremos de chegar a algum lado, diria António Costa... desde que caminhemos o suficiente para lá chegar.

A questão essencial não é se Costa e Silva é um bom nome (porque é) nem se é bom consultar independentes (também é). Costa e Silva não é um tiro no pé, mas pode ser um tiro para o ar, se o seu plano ficar no pó da prateleira das ideias impraticáveis ou se um dia destes cair da cama do desejado, bastará uma frase errada numa das demasiadas entrevistas que está a dar e o céu vira-se do avesso para o chão da política real. Mas mesmo que este tiro de Costa seja um tirocínio para Costa e Silva ser ministro do Planeamento, a questão essencial ainda é outra. É isto revelar não só que o Governo não se lembrou do futuro no início da pandemia como não encontra no Estado (não no Governo, no Estado) a capacidade de planea­mento, prospetiva e estratégia sem a qual Governo nenhum será mais do que Alice à deriva num Mundo das Maravilhas.

Quando, em abril, o primeiro-ministro reuniu 25 economistas para discutir o futuro, fiquei pasmado. Só agora? Mas até aquele agora foi o vazio: vários dos 25 relataram a animação de um encontro de nada, só improvisação e inconsequência.

Num Governo há três meses em emergência, os ministros não têm tempo nem para dormir, quanto mais pensar. Isso é natural. O que não é normal é não ter sido criada logo no início uma equipa de maduros estudiosos que ficassem confinados nas sebentas para municiar o Governo dali a uns meses, isto é, agora. Pior, tudo isto confirma que a Administração Pública foi lobotomizada. E isso explica tanta coisa, tantas estradas, tantos incêndios, tão pouca agricultura, tão pouco interior, tanta improvisação na justiça, na educação e saúde, tanto nada, tão pouco muito.

Os ministros são até vítimas. Um Governo tem de tomar decisões políticas com base em informação técnica, o resto é palpite e teste à sorte de um instinto. A decapitação da Administração Pública (acelerada com Sócrates e concluída com Passos) desprezou o pensamento. Onde estão os gabinetes de estudos do Estado? Onde está, aliás, a academia, que brilhou na pandemia na Ciência e na Saúde, mas na Economia foi dispensada do lugar do pensamento para a pantalha do comentário?

Só a informação esclarece e só o conhecimento transformado em pensamento alumia. A Alemanha está hoje a debater um plano de transformação radical da política económica, para indústrias de tecnologia e ciência avançadas, com mais Estado e protecionismo, para criar campeões que façam encosto de ombro à China e aos EUA. Não interessa discutir neste texto se esse é o caminho certo, interessa observar que há um caminho. E nós?

Portugal já teve um Ministério do Planeamento e gabinetes de estratégia a sério. Era o caso, entre outros, do Departamento de Prospetiva e Planeamento e Relações Internacionais, órgão com o nome mais chato do mundo, cheio de pessoas chatas, que faziam relatórios chatos que poucos liam. Lia quem precisava: os Governos que decidiam. Um desses chatos era José Manuel Félix Ribeiro. Se procurarmos agora um desses estudos, até encontramos uns relatórios recentes chatos, tão chatos como deslumbrantes, feitos para a Gulbenkian e para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto por mulheres e homens chatos como... José Manuel Félix Ribeiro.

Desejo-nos sorte. Pedir um plano em meia dúzia de semanas, por melhor que ele e o seu autor sejam, é só isto: estamos a improvisar. Fazemo-lo há anos. Por isso seguimos à risca o que nos mandam, seja a troika antes ou a UE a seguir. Se não pensamos, compramos feito e metemos o pré-congelado no micro-ondas. Um país que delega a estratégia noutros será sempre um país com a estratégia de outros. Sejam eles lúcidos ou loucos. Ou, como diz o gato, “somos todos loucos aqui”.

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