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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Três tristes tigres

Curto

João Cândido da Silva

João Cândido da Silva

Coordenador do Expresso Online

22 JUNHO 2020

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Bom dia,
Podia ter sido apenas ridículo, provinciano ou disparatado, mas foi pior. Muito pior. A cerimónia que reuniu as mais altas figuras do Estado português com o objectivo de anunciar a realização, em Lisboa, dos jogos de futebol da fase final da Liga dos Campeões dificilmente teria boas razões para acontecer. Daria sempre, como deu noutras ocasiões semelhantes, um sinal de subalternização do poder político em relação a um grupo de pressão pouco transparente e com tendência para servir de terreno onde se jogam influências e se trocam favores e apoios. O facto de ter acontecido no quadro de uma pandemia que está longe de ter sido debelada só tornou o evento mais lamentável.
Uma situação de excepção exige qualidades de liderança excepcionais. Se for pedir demasiado, então que haja dois sucedâneos razoáveis ou melhores: prudência e sensatez. Mesmo em proporções residuais, podem dar muito jeito. Entusiasmados com a ideia de darem uma notícia moralizadora, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Eduardo Ferro Rodrigues acabaram por fazer o contrário. Transformaram-se nos porta-vozes da desmoralização e do relaxamento e desferiram um golpe na credibilidade das regras e recomendações que desaconselham e tentam impedir aglomerações de pessoas.
Riram-se na cara dos pais que têm crianças que não podem ir à escola. Desprezaram as imensas dificuldades de quem tem de reerguer negócios sob a obrigação de cumprir restrições que, em nome da saúde pública, dificultam a tarefa. Garantiram que se trata de uma enorme conquista para a recuperação do turismo, mas não se deram ao trabalho de explicar se, no fim de contas, poderá haver público nos estádios, quando os festivais foram abatidos do calendário, ou se o feito inexcedível para a promoção da "marca Portugal" será testemunhado por bancadas vazias, caso em que não se percebe onde poderá estar a razão para tamanho deslumbramento e entusiasmo. Organizaram uma sessão de marketing e enredaram-se numa teia de contradições.
A economia tem de recomeçar a funcionar. Mas não há vacina para a covid-19, nem fármacos com total e comprovada eficácia. A actividade tem de ser ressuscitada com a colaboração do comportamento disciplinado e responsável dos cidadãos. O vírus é insensível à propaganda política, mas a capacidade de propagação beneficia com os sinais errados e aproveita-se dos maus exemplos. Se a ideia é a de usar uma competição desportiva para atrair turistas, a percepção gerada é a de que as portas estão abertas para o regresso a uma normalidade tão ansiada quanto arriscada.
Uma celebração em Lagos gerou quase uma centena de infectados. Mais de mil pessoas participaram numa festa num parque de estacionamento em Carcavelos, na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o desconfinamento tem desencadeado a maioria dos novos casos de infecção. Não surpreende que uma vaga de jovens infetados em esplanadas e praias esteja a chegar ao internamento do Hospital de Santa Maria. Em Braga e no Porto, a polícia teve de intervir para desagregar grupos que violavam as normas em vigor. Em Setúbal, a Polícia Marítima dispersou agrupamentos de jovens nas praias da Arrábida. Com a aproximação do período de férias escolares, os riscos aumentam. A cautela de quem está no topo das estruturas de poder devia subir também.
Marcelo, Ferro e Costa são responsáveis directos pelos casos de incumprimento? Não. Mas compete-lhes moderar o ímpeto quando se deparam com uma oportunidade para conquistar popularidade sem olhar ao preço. A boa notícia é que parece terem-se apercebido do alçapão em que mergulharam de cabeça. Para corrigir o deslize, decidiram atirar-se em direcção ao extremo oposto. O primeiro-ministro veio a público ameaçar com forças da ordem na rua a multar a torto e a direito. O Presidente da República admitiu a aplicação de "medidas mais duras" das autoridades e queixas ao Ministério Público. Quanto a Ferro Rodrigues, talvez esteja em casa a matutar sobre novas tácticas para fazer oposição a André Ventura.

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