por estatuadesal
(José Soeiro, in Expresso Diário, 11/07/2020)
José Soeiro
A greve dos entregadores no Brasil é um sinal novo e importante. Os trabalhadores de plataformas como a UberEats, a Glovo, a iFood ou a Rappi têm sido essenciais durante a pandemia. O volume de pedidos não deixou de aumentar neste período – mas subiu também, para o triplo, o número de trabalhadores que procuraram nas plataformas digitais algum rendimento, num contexto em que outras atividades estavam paralisadas e em que a maioria dos brasileiros, por não ter “carteira assinada”, não tem qualquer forma de proteção social.
Uma investigação divulgada recentemente dava um retrato do setor naquele país: 75% trabalha exclusivamente para estas plataformas e está conectado a duas aplicações distintas ao mesmo tempo. 77% dizem que trabalham mais de 10 horas diárias, quase metade 12 horas. Não têm contrato ou vínculo à plataforma, os rendimentos são altamente variáveis em função dos pedidos e dos rankings, com uma percentagem significativa a ir para a multinacional que é proprietária da aplicação, não têm infraestruturas básicas de descanso ou para irem ao quarto de banho, não têm proteção social, os acidentes correm por sua conta e ficam entregues a si mesmos em caso de doença, incluindo a covid. A larga maioria usa moto, mas mais de um quarto move-se de bicicleta. Metade declara ter sofrido já um acidente durante o trabalho. Se reivindicam qualquer coisa, a retaliação é simples: são bloqueados na aplicação, ficam “em branco”, sem que lhes sejam encaminhados pedidos para o seu telemóvel. No Brasil, os entregadores são maioritariamente homens, abaixo dos 34 anos e negros.
Foi contra esta desproteção radical que milhares deles encheram as ruas de algumas das principais cidades brasileiras no início deste mês. Paulo Galo, 31 anos, porta-voz do Movimento dos Entregadores Antifascistas, já presente em 11 estados, faz o balanço da maior manifestação de sempre de estafetas: “Tinha muito companheiro ainda iludido na ideia de ser empreendedor e tal, e sem entender que a luta é pelos nossos direitos”. E acrescenta: “Nunca vi a rua de São Paulo tão linda, olhar nos olhos dos meus companheiros e reconhecer que ali não estavam empreendedores e sim trabalhadores”.
Também em Portugal, o universo das plataformas não tem parado de crescer. Segundo um estudo da Comissão Europeia, envolve já cerca de 10% da população empregada. Não admira, por isso, que se esbocem tentativas de organização sindical, propostas para criar uma aplicação pública de entregas com padrões laborais decentes e sem multinacionais (como foi aprovado na Câmara de Lisboa) ou que haja quem tente lançar a semente de uma possível cooperativa de estafetas.
Qualquer uma destas iniciativas procura reconstruir direitos e formas de representação junto da que é, provavelmente, a modalidade mais radical de precarização que hoje existe: a que passa por converter patrões em clientes, por converter empresas em meros intermediários e por converter trabalhadores em empresas. Este movimento de fundo, há muito identificado pelo jurista Jorge Leite quando falava na “deslaboralização das relações de trabalho”, é uma distopia selvagem – mas está aí. Sem precisar de acabar formalmente com os contratos de trabalho, com a proteção no desemprego ou na doença, sem precisar de proibir os sindicatos ou de acabar com o direito à greve, o que este processo faz é tentar esvaziar qualquer uma dessas categorias, retirando delas, cada vez mais, uma parte significativa da classe que vive do trabalho.
São centenas de milhares os “emprecários” em Portugal. Há mais de meio milhão de trabalhadores independentes, e mais algumas centenas de milhares de empresários em nome individual. Estamos a falar praticamente de um quarto da força de trabalho. Serão verdadeiramente “empresários” e “independentes” todas estas pessoas?
No setor da cultura ou nas entregas de comida, na prestação de cuidados ou em profissões técnicas, muitas pessoas foram, de facto, empurradas para a condição de empresários de si próprios para que as suas relações laborais fossem enquadradas pelo direito dos negócios, subtraindo-lhes assim todos os direitos associados a um contrato. São precários-empresa.
Esta realidade dos 'emprecários' (aparentes empresários na realidade precários), ficou escancarada com a pandemia. Entre abril e junho de 2020, houve 198.999 trabalhadores independentes que pediram o apoio extraordinário da segurança social por terem ficado sem atividade. Houve 25.108 membros de órgãos estatutários (às vezes de associações criadas para se empregarem a si próprios, como acontece na cultura) que o fizeram também. À luz das leis que temos, estes cerca de 200 mil desempregados não tinham acesso a subsídio de desemprego (porque supostamente não têm sequer empregador) e não cabiam sequer no mais que residual “subsídio por cessação de atividade”.
A falácia do “transforma-te numa empresa que és tu” parece ter sido posta a nu nos últimos meses. Na maior parte das vezes, é mesmo só um engodo que nos desprotege. De facto, é como trabalhadores que muitas destas pessoas se reconhecem – vejam o que se passa na Casa da Música e em Serralves, mas também nas plataformas - e não há medidas extraordinárias de proteção social que resolvam a raiz do problema, que é a falsificação de milhares de relações laborais em relações de prestação de serviço.
Também por cá, esta realidade dos 'emprecários', dos falsos independentes e das plataformas mexe. A pandemia veio expô-la como nunca. Mais tarde ou mais cedo, também por cá acabará por explodir.
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