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sexta-feira, 31 de julho de 2020

A visão distante de um mundo sem pobreza

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 30/07/2020)

Alexandre Abreu

As Nações Unidas criaram a figura de Relator Especial (Special Rapporteur) na década de 1980. Trata-se de um cargo temporário, atribuído a personalidades de reconhecida competência normalmente exteriores à organização, que confere o mandato de investigar, aconselhar e relatar acerca de um determinado aspeto ou dimensão dos direitos humanos. Existem Relatores Especiais dedicados a países especificos, como o Haiti ou a Palestina, e a temas diversos, como a Violência Contra as Mulheres ou as Execuções Extrajudiciais. A portuguesa Catarina de Albuquerque, por exemplo, foi Relatora Especial para o Direito à Água e Saneamento entre 2008 e 2014.

O mais recente Relator Especial para a Pobreza Extrema e Direitos Humanos, o jurista australiano Philip Alston, terminou recentemente o seu mandato de seis anos. Neste contexto, entregou no início deste mês o seu relatório final à Comissão dos Direitos Humanos, ao qual deu um título que podemos traduzir por algo como “O estado alarmante da erradicação da pobreza”. É um documento breve (19 páginas), mas notável pela frontalidade dos alertas que lança e das críticas a que procede. Em particular, o relatório de Alston inclui duas críticas especialmente iconoclastas: que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada; e que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) não são adequados para a erradicação da pobreza extrema global.

A ideia que a pobreza extrema não está realmente a ser erradicada assenta numa crítica à medição desta com base no limiar internacional de 1,90 dólares definido pelo Banco Mundial, que serve de referência para a maior parte dos estudos e análises. À luz deste critério, o número de pessoas em situação de pobreza extrema reduziu-se de 1,9 mil milhões em 1990 para menos de 750 milhões em 2015, o que constitui uma evolução notável e tem servido de justificação para muitas declarações congratulatórias acerca do progresso do desenvolvimento global. Porém, como assinala Alston, dois terços desta redução ocorreram num único pais, a China, sendo os progressos no resto do mundo muito menos relevantes. Para além disso, o rendimento diário de 1,90 dólares que serve como referência absoluta internacional não foi definido com referência a um qualquer cabaz de necessidades básicas e não permite um nivel de vida minimamente digno. Se procurarmos controlar estes dois efeitos, retirando por momentos a China da análise e utilizando por exemplo um limiar de rendimento um pouco maior (2,50 dólares), verificamos que o número de pessoas em situação de pobreza extrema praticamente não se alterou entre 1990 e 2015.

A segunda crítica – à adequação dos ODS e da Agenda 2030 – é igualmente iconoclasta, na medida em que estes constituem a meta-narrativa fundamental de valores e objetivos não só para as Nações Unidas como para muitos governos nacionais e para a generalidade dos atores bilaterais, multilaterais e não-governamentais do desenvolvimento global. Alston reconhece que os ODS têm tido um impacto positivo e importante ao nível da consciencialização e mobilização da opinião pública global. No que toca ao combate à pobreza, no entanto, a Agenda 2030 caracteriza-se por uma disjunção fundamental entre a ambição dos objetivos declarados (a erradicação) e a insuficiência dos recursos, estratégias e processos. O financiamento público é insuficiente, a estratégia de mobilização de financiamento privado é inadequada e há uma gritante falta de atenção às dimensões políticas da pobreza. Se quisermos realmente erradicar a pobreza extrema global, conclui o relatório – e trata-se realmente de uma escolha coletiva alcançável –, é necessário tomar opções políticas e de políticas consequentes com esse objetivo: reforçar a redistribuição, combater a desigualdade, promover maior justiça fiscal, generalizar os sistemas de proteção social, recentrar o combate à pobreza na ação dos governos em detrimento da filantropia privada e da mobilização de financiamento privado, e dar mais voz e poder às pessoas em situação de pobreza e exclusão.

Os alertas constantes deste relatório são especialmente prementes à luz do impacto previsível do Covid-19 e da crise climática sobre a deterioração da pobreza global, mas são também especialmente adequados na medida em que recolocam a discussão sobre a pobreza no plano dos direitos humanos.

Isso recupera o princípio importante e plenamente justificado de que os direitos económicos e sociais são direitos humanos com tanta dignidade e importância como os direitos civis e políticos – uma tradição que remonta às primeiras décadas de existência das Nações Unidas mas que foi em grande medida eclipsada pelas últimas décadas de predomínio do liberalismo, o qual privilegia injustificadamente os segundos e relega os primeiros para um segundo plano meramente complementar e aspiracional – não como um direito a ser exercido, mas como um resultado que desejavelmente será alcançado.

Na realidade, como afirma um outro especialista no tema, Michael Cichon, a persistência de uma proporção elevada da humanidade abaixo de um limiar de existência minimamente digno, num mundo em que bastaria reafectar uma pequena percentagem da riqueza global para que isso fosse evitado, é uma das mais graves violações de direitos humanos com que nos confrontamos.

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