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quinta-feira, 30 de julho de 2020

Bruno Candé: Já não há adultos na sala?

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/07/2020)

Daniel Oliveira

Como é evidente, não chega um branco matar um negro para estarmos perante um crime de ódio. Pelos testemunhos da família de Bruno Candé, que não teria qualquer razão para mentir num momento de dor como este, e de muitas outras pessoas temos razões para acreditar que o seu homicida era profundamente racista. E que o mostrou à sua vítima nos dias anteriores ao crime no meio de ameaças recorrentes. Isto não chega para sabermos se as suas motivações foram racistas.

Não tardou para que a vítima de um assassinato brutal, com quatro tiros à queima-roupa, fosse transformada em suspeito. Tenha ou não havido motivações racistas para o homicídio, não há agressão ou assassinato de um negro que não acabe em relatos que nos tentem mostrar que a vítima lá teve as suas responsabilidades no desfecho trágico. Isso só não acontece quando o homicida ou agressor é cigano, claro. O racismo tem as suas hierarquias.

Espero pelo fim das investigações da Polícia Judiciária (PJ) para formar uma opinião – a conclusão, essa só virá com o julgamento que, tendo em conta a idade do homicida, espera-se rápido. Aquilo de que quero tratar é do comportamento de quem tem responsabilidades institucionais.

Nem falo de André Ventura, que que achou excelente partilhar um screenshot de um post escrito por uma senhora que não faz ideia quem seja a denegrir a vítima do homicídio. Chega-se ao fim daquele “post” e a conclusão é uma: ele estava a pedi-las. Ventura partilhou-o depois de endereçar os sentimentos à família, claro está. Não é virgem na brincadeira – já tinha partilhado a mentira de que os homicidas do jovem cabo-verdiano em Bragança eram ciganos. Ao partilhar um “post”, autêntico ou apócrifo, denegrindo a vítima e em que praticamente se justifica o homicídio, elogiando a autora desconhecida pelo seu “corajoso testemunho”, André Ventura entra um pouco mais no território da marginalidade política. Tanto faz, o segredo do seu sucesso é ser falado. E a nós, que falamos dele, resta um dilema: ignoramos até que ponto? Até ele apelar ao homicídio para dar nas vistas?

Mas Ventura é só a exibição grotesca e política da bandalheira institucional que se instalou. Nestes dias, o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP fez saber que, ao contrário dos jornalistas, não recolheu qualquer depoimento em que fosse relatado motivo racista. Pelo contrário, ele é afastado. É possível que assim seja, mas espero pela investigação para conhecer o móbil do crime. O que me deixou atarantado é ver o Comando de Lisboa a fazer declarações públicas sobre um caso que não está nem podia estar a investigar. Pode ter querido recolher depoimentos para terceiros e é a esses terceiros e não à imprensa que os deve entregar. Sem tirar conclusões precipitadas sobre uma investigação que não é sua. Até porque, em princípio, esses terceiros repetirão as inquirições.

Os homicídios, em Portugal são investigados pela PJ. Diz o artigo 7º da Lei de Organização da Investigação Criminal que é da competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminal”, a investigação de “crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a more de uma pessoa”. Não é apenas uma questão formal. A PSP é uma polícia de prevenção criminal e proteção das pessoas (competências muitíssimo relevantes para o conjunto da sociedade), com funções de investigação limitadas. Os seus agentes não têm formação, treino, instrumentos ou competência para este tipo de investigação mais complexa. As suas funções de investigação não incluem a identificação do móbil de um crime de homicídio. É por isso que o Comando Metropolitano Lisboa da PSP foi imediatamente desautorizado pela PJ, que disse que o que tinha de dizer nesta fase: que não afasta nenhum dos cenários.

É verdade que a importante mas pouco mediática função preventiva não dá à PSP aberturas dos telejornais na CMTV, mas seria bom que começasse a haver alguma contenção nas suas cúpulas. Que o cidadão forme a sua convicção sobre a natureza deste crime com base em notícias, é natural. Eu próprio o fiz. Que políticos eleitos o façam é arriscado mas aceitável dentro de alguma cautela. Que um deputado decida denegrir a vitima é abjeto. Que a PSP decida mandar postas de pescada sobre um caso cuja investigação não lhe compete (mesmo que recolha alguns testemunhos, que serão de novo ouvidos por quem vai investigar) é preocupante.

Investigará este crime a PJ, polícia que tem mostrado profissionalismo e, ao contrário de outros, grande resistência a instrumentalizações políticas. E será o julgamento a confirmar as suas conclusões. Por agora, sabemos duas coisas: que quando temos uma PSP a falar publicamente sobre uma investigação que não lhe pertence e um deputado a denegrir a vítima de um homicídio com base em testemunhos de desconhecidos que nem sabe se são verdadeiros alguma coisa muito perigosa está a acontecer às nossas instituições. Que haja adultos na sala.

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