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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Então, já há almoços grátis?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 25/07/2020)

A cimeira europeia teve três dias de gritaria e um dia de Twitter, com cada governante a vender o resultado da barganha como se fosse um evento transcendente. É a normal luta pelo controlo da informação. Fora da sala, houve quem se consolasse com o fumo branco, houve mesmo quem garantisse que era um momento mágico, “hamiltoniano”, e que nasceu o Estado europeu, houve de tudo, mas no fim fica sempre a continha.

A CONTA VEM ANTES DO ALMOÇO

A conta foi feita por Lagarde: é menos de metade do que era necessário. E por Merkel e Macron: os 400 mil milhões de subsídios eram a linha vermelha, aceitaram a humilhação de a baixar. E por todos os governantes que anuíram a um orçamento reduzido, o que tinham jurado combater até à última bala. Ficou uma inovação, a emissão de dívida pela Comissão Europeia, a ser paga entre 2028 e 2058, só que não se sabe como. Até ver, é um empréstimo garantido pelo Estados, ou seja, vão pagar nos orçamentos por três décadas, a não ser que sejam aprovados novos recursos, precisamente os que têm sido persistentemente recusados, e ouvir agora promessas, aliás pouco enfáticas, de uma taxa sobre transações financeiras, já votada há nove anos e sempre bloquea­da, soa a banha da cobra. Talvez a taxa sobre o plástico seja aprovada em 2021, mas será pouco. Esse é o primeiro risco da decisão — não se sabe como vai ser paga a conta. Ou seja, o que para já se criou foi dívida adiada.

O segundo risco é uma certeza, as grandes reformas europeias vão ser reduzidas com o seu orçamento. O Green Deal ou a Europa digitalizada são secundarizados. A transição justa perde dois terços do orçamento, o Horizon, programa para cooperação científica, perde quase tanto. Uma parte dos seus objetivos poderá ser consagrada nos programas nacionais ao abrigo dos subsídios e empréstimos, mas é de notar que há uma diferença entre planos locais e uma colaboração europeia com orçamento.

A PIOR CONTA É A POLÍTICA

No Orçamento plurianual, Portugal sofre uma redução precisamente onde o primeiro-ministro prometera não se perder um cêntimo. São cortes de 7,5% na coesão (o Governo soma-lhe os novos fundos extraordinários para evitar esta conta) e de 9% na agricultura. Esses são cortes permanentes, que agravam reduções anteriores nos fundos de coesão. Argumenta o Governo que há que considerar agora os fundos extraordinários (9,6 mil milhões do Fundo de Recuperação Europeia e talvez mais 5,7 mil milhões dentro de dois anos), o que pode ter um impacto grande na economia, o que é certo. Mas as contas são mais complicadas: a Grécia, menos afetada pela pandemia que Portugal (tem quatro mil casos e 200 mortos), receberá €19 mil milhões de subsídios (13,3 dos quais em 2021 e 2022) e 12,5 de empréstimos — a distribuição é feita segundo critérios talhados à medida de cada fato.

Há então vários riscos pesados. Não se sabe como vai ser paga a dívida europeia, há desigualdades entre países, os dois grupos não merkelianos ganharam poder, o dos frugais e o de Visegrado, e, sobretudo, impuseram uma norma: o chamado travão de emergência, que pode ser o detonador de novas crises.

Percebe-se a resistência de vários Governos, mas aceitaram uma solução comprometedora: um país pode reclamar da execução de programas noutros, criando-se uma forma de tutela pelo Conselho que politiza em conflito internacional o que deveria unir a União. Não sei se, na afobação dos twites autocongratulantes, os governantes se deram conta de que assim aprovaram uma cláusula que vai inventar novas tensões, sem escape possível.


O meu ditador é pior do que o teu

Se fosse um país, o Facebook seria a Coreia do Norte”, escreve a jornalista Carole Cadwalladr no “The Guardian”. Que exagero. Uma empresa comparada com uma nova potência nuclear? Uma plataforma de contacto medida por um regime que não tolera a liberdade de opinião? Cadwalladr sustenta que é pior e que tem mais consequências para a nossa vida. Diz ela: se colossos como a Unilever e a Coca-Cola, que suspenderam os anúncios no Facebook, não o forçam a negociar e a administração gaba-se ao “Wall Street Journal” de só ter menos de 5% de lucros com esse boicote mundial, então é porque Zuckerberg é mais poderoso do que um país. E o mercado sabe-o: quando a empresa foi condenada à multa de cinco mil milhões de dólares por ter facilitado a operação da Cambridge Analytica, o valor das suas ações subiu.

Por se ter tornado o palco universal de todos os discursos de ódio, que ­criam uma febre contagiante e que, por isso, são o pilar da comunicação atual, o Facebook é uma arma mais poderosa do que qualquer míssil, garante a jornalista. O seu exemplo tremendo é o relatório das Nações Unidas sobre o massacre dos rohingyas de Myanmar, que afirma que o Facebook teve um “papel determinante” ao aceitar promover a agressão e ao permitir a transmissão em direto do genocídio, que fez dezenas de milhares de vítimas. Mas é a aliança entre Zuckerberg e Trump que mais inquieta Cadwalladr. Não havendo limites à convocação da violência, todas as milícias do ódio se podem mover naquele universo de 2600 milhões de participantes, e é o que fazem sem limite, conclui ela.

O poder desta rede é, assim, imenso. Aaron Greenspan, que estudou em Harvard e foi colega de Zuckerberg, com quem terá inventado o Facebook em 2003 e 2004 (a empresa pagou-lhe há 10 anos para encerrar um litígio judicial por direitos autorais) e que se tornou um crítico da rede social, publicou um relatório, em janeiro de 2019, em que afirma que metade dos perfis é falsa, com base em dados da própria empresa. O Facebook desmente, reconhecendo um número menor, um em cada 20. Seriam, assim, 130 milhões ou mais perfis falsos, cuja função essencial é promover a mentira. Kim Jon-un é só um aprendiz. O feiticeiro já está dentro da nossa casa.


E se o desemprego chegar ao milhão?

Há semanas citei os dados oficiais que indicam haver hoje cerca de 750 mil pessoas desempregadas ou em situação de “subutilização” do trabalho. Este retrato contrasta com o registo artificial, mas também oficial, de uma baixa da taxa de desemprego. A explicação não é misteriosa: há mais de 200 mil novos desempregados com a recessão atual, mas uma parte significativa aparece como tendo deixado de fazer parte da população ativa, seguindo-se para esta contabilização os preceitos do Eurostat, que já critiquei noutros momentos. Isso não aconteceu porque os centros de emprego tenham estado fechados pelo confinamento (agradeço a correção ao Instituto do Emprego e Formação Profissional), pois continuaram a funcionar, embora, entre 1 de março e 7 de julho, a data a que se reporta a informação (com 72,5% dos contactos não presenciais), houvesse menos 35% de atendimentos do que no período homólogo.

Com a reabertura da sociedade, a dimensão da crise do desemprego agiganta-se e o biombo estatístico da taxa de desemprego vai-se revelando. Podemos chegar ao milhão de pessoas desempregadas no outono ou no inverno. Numa década, é a segunda grande crise vivida por muitas das pessoas mais vulneráveis, e não são só os trabalhadores menos qualificados, são também jovens e profissionais com carreiras anteriormente estáveis. Eis o problema número um de Portugal: uma economia que não cria empregos nem responde a uma crise.


É assim que começa

O que mais choca na convergência PS-PSD para que o primeiro-ministro só passe a ir de dois em dois meses ao Parlamento não é o argumento parolo (“deixem-no trabalhar”) nem sequer o descaramento (não são os mesmos que adoram elogiar a “casa da democracia”?), mas antes o calculismo. Este passo é de enormes consequências e não é só por demonstrar uma visão instrumental da democracia. É um teste ao país, para saber se vai aceitar o bloco central, para já disfarçado, como a forma do regime. É, como se diz em bom português, uma esperteza saloia.

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