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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A pressa facebookiana é má conselheira

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 18/08/2020)

Há um par de dias, Carlos César usou da sua exuberante forma de cordialidade para exigir no Facebook aos partidos de esquerda que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”, mostrando se “são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços”. A meio de agosto e antes de começarem as negociações detalhadas sobre os temas do Orçamento, este “de uma vez por todas e sem mais demoras” soa ao que é. O problema é que para fazer chantagem se exige algum saber e basto sentido de oportunidade. Ambos escasseiam neste “de uma vez por todas”.

Há um ano atrás, em junho e era véspera de eleições, o mesmo César explicava que o PS não devia continuar a geringonça e devia romper com o Bloco porque, se o PS fosse “sempre atrás do BE”, o país voltaria “ao tempo da bancarrota”. Num discurso aos seus deputados, explicou que era preciso evitar as “aventuras orçamentais que levariam ao colapso e à desconfiança internacional” e que, para isso, a única solução era uma maioria absoluta contra os “bloqueios” e “constantes dificuldades” da geringonça. O primeiro-ministro, em entrevista ao Expresso, explicou o mesmo apelo aos eleitores: ou maioria absoluta ou caos. Parece que, um ano depois, é ao contrário, haverá bancarrota se não houver acordo “de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.

Há um ano, havia em todo o caso uma alternativa na manga, que era o “acordo de cavalheiros” com o PCP. O PCP tem “uma estabilidade na sua ação política que lhe dá coerência, sustentabilidade, previsibilidade, e, portanto, é muito fácil trabalhar com ele”, dizia Costa. E era uma certeza pessoal, a mais profunda das emoções: “quando ele (Jerónimo) diz que entre gente de bem basta um aperto de mão ou mesmo olharmo-nos olhos nos olhos”, não é preciso um acordo escrito, explicava o primeiro-ministro. Com a sua “experiência de trabalho com Jerónimo de Sousa", Costa afirmava não ter a “a menor das dúvidas”, assunto arrumado. Olhando-se nos olhos, com um aperto de mão, “é fácil trabalhar” com o PCP, a coisa estava garantida, não havia “a menor das dúvidas”. Parece que, um ano depois, é também ao contrário, já é conveniente o acordo escrito que era então rejeitado.

O certo é que falhou tudo. O PCP foi prejudicado por estas insinuações, o PS não teve maioria absoluta e foi necessário definir as novas condições de governação. Mas, como antecipado por tais declarações belicistas, a partir das eleições o governo recusou qualquer quadro de cooperação para a legislatura.

A geringonça foi enterrada com a convicção de que o PS estava mais forte e ditava a lei, quando, pelo contrário, ao perder a oportunidade da maioria absoluta e ao destruir a geringonça, ficou mais frágil, como hoje se verifica nestas aflições de agosto.

Curiosamente, César agora culpa o PCP, com o qual então não havia “a menor das dúvidas”, pela rejeição da geringonça e pela instabilidade política assim criada: “A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade”. É uma acusação injusta e até extravagante, dado que essa recusa tinha sido claramente anunciada por Jerónimo de Sousa durante a campanha e foi Costa quem inventou um pretenso idílio em que bastaria “olharem-se nos olhos” e “um aperto de mão” para tudo ficar resolvido. Era falso, como se verificou num ápice.

Assim, a realidade é teimosa: há um ano, o PS recusou começar uma negociação que poderia criar uma maioria parlamentar, pois não aceitava um acordo, afirmando que este levaria à “bancarrota” e, além disso, não admitia que estivessem na mesa de discussão as reformas laborais da troika, apesar de prometer ao país um “olhar nos olhos” com o PCP, numa encenação unilateral. Um ano depois, César exige ao PCP (com quem “é fácil trabalhar” mas não quer) e ao Bloco (que propôs um acordo mas que foi recusado) que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”. A palavra “calculismos” tem aqui um sabor amargo. O problema é que o governo ainda não fez as suas escolhas para apresentar as suas propostas orçamentais; que o plano Costa e Silva ainda não foi concretizado em projetos de médio e longo prazo; e que as discussões detalhadas entre o governo e os partidos de esquerda ainda não avançaram, estando agendadas para as próximas semanas. Como podem então concluir-se antes de começarem? A intimação facebookiana de César só tem por isso uma leitura e não lhe é lisonjeira.

Era preferível mais prudência e menos calculismo. Sair da gritaria no Facebook e sentar-se em reuniões de trabalho. Evitar truques de retórica e estudar propostas. Deixar as rasteiras e discutir questões difíceis. Evitar atalhos. Aliás, poderia ser um sinal interessante que o governo aceitasse agora discutir normas da lei laboral no combate à precariedade e desemprego, se não se tratar de um engodo que vá desaguar no direito de veto das associações patronais na concertação social, mas é preocupante que ao mesmo tempo inicie um recuo sobre o salário mínimo nacional. No meio destes movimentos paradoxais, a ordem dada pelo presidente do PS é o mais desastrado das percalços.

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