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sábado, 29 de agosto de 2020

Depois de Trump, o dilúvio

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/08/2020)

Daniel Oliveira

Corre por aí um meme em que aparece Bernie Sanders ao lado da Ocasio-Cortez, em cima, e Joe Biden ao lado de Kamala Harri, em baixo. A legenda diz: “quando pedes uma Coca-Cola e eles perguntam: ‘pode ser Pepsi’”? Claro que este meme foi feito por um apoiante de Bernie. Se fosse este o sentimento dos democratas, Sanders teria ganho. Só que Biden é o “outro". Aquele que era preferível a Bernie para os centristas e agora será preferível a Trump para os progressistas, sem nunca mobilizar realmente muita gente. E não se pode sentar na vantagem que as sondagens lhe dão, porque o espera o inferno. Para Trump e as suas tropas vale tudo e tudo será feito. Se já é geralmente assim nos EUA,se já é assim com os republicanos há muito tempo, com Trump não há limites para o mergulho na lama.

Nas últimas semanas e na própria convenção republicana, Donald Trump regressou ao que parece ser a sua linha de campanha enquanto as sondagens não lhe correrem de feição: que os EUA se prepararam para o maior golpe da história do mundo. Com ele é sempre em grande. Em causa está a necessidade de alargar o voto por correspondência, devido à covid 19. Na realidade, os democratas até serão os que mais usarão este método de voto. O texto em português mais esclarecedor e sintético que li sobre o tema foi aqui.

A pandemia trocou as voltas a muitos governos. E também as trocou a Trump. Se todos tiveram de improvisar um pouco, a sua resposta foi especialmente incompetente. Uma pandemia não se combate com tweets e polémicas diárias. Nem sequer chega arranjar um inimigo, apesar de Trump, como Bolsonaro, o ter tentado com a China. Não consta que com isso tenha sido salva uma única vida. Para lidar com uma pandemia é preciso mínimos de competência política – e nem assim corre bem – que todo o foguetório de que vive a extrema-direita não consegue simular. E com a pandemia veio a crise económica. A economia, e não o seu discurso incendiário e de ódio, é que lhe podia dar a reeleição. Sobra o discurso da “lei e da ordem” perante a revolta racial. Um discurso que funciona.

Não sei se Trump tem as eleições perdidas. Desde as últimas, em que senti nos EUA coisas bastante diferentes daquelas que por cá se diziam, que desconfio de sondagens e previsões. Sei que tudo está contra ele. E ao lançar a suspeita de fraude eleitoral, Trump dá sinais de nervosismo. Se há quatro anos até um Trump vencia Hillary, pode ser que agora até um Biden vença Trump.

A preparação dos seus apoiantes para a recusa de uma derrota não surpreende. Trump usa a democracia, não acredita nela. Como Bolsonaro, que perante os contrapoderes que qualquer democracia exige põe os seus seguidores a defender golpes militares e o encerramento de tribunais. Todas as instituições e as suas decisões são politicamente contestáveis. Mas contestar é diferente de defender o derrube pela força dos que limitem o poder executivo.

Há uma diferença entre Trump, Bolsonaro ou, à sua pequeníssima escala, Ventura e os outros políticos, sejam moderados ou radicais: eles não têm um projeto de continuidade que exija a preservação das instituições; não têm um programa político que sobreviva ao seu exercício de poder. Eles são o projeto. À sua volta, há quem tenha projeto e os use, há quem tenha interesses e também os use. Bandos de fanáticos e de oportunistas, uns com projetos futuros outros com ganâncias presentes, aproveitam o momento da conquista para a violência ou o saque. Mas eles têm o seu próprio ego como único fim. Não faria qualquer sentido para um político como Trump aceitar uma derrota eleitoral. Ele está nos antípodas de Al Gore, que em nome do futuro do país aceitou uma derrota que estava convencido, ele e muita gente, que não tinha sofrido. Trump nada tem a preservar a não ser o seu próprio poder.

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