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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Para onde caminha a nossa democracia?

Posted: 24 Aug 2020 04:04 AM PDT

«“O salazarismo foi uma doença que pôs de rastos o povo português”, refere José Gil no seu livro Portugal Hoje, o Medo de Existir. Esta afirmação permanece actual, porque o povo continua de rastos, provavelmente como nunca esteve antes em democracia. Pode parecer arriscado entrar desta forma, mas mais do que nunca parece-me ser fundamental levantar algumas questões sobre o nosso sistema político e a evolução das práticas nacionais-populistas em Portugal.

Há muitos anos que os círculos mediáticos e políticos se esforçam para estabelecer um status quo aceitável, importando para os discursos com valores democráticos, valores e costumes opostos aos da liberdade e justiça social. E é precisamente aqui que interessa dissecar a doença identificada por José Gil, o fantasma do salazarismo que transitou para a democracia paira ainda hoje sobre as nossas cabeças. A nossa sociedade ignorou sempre este debate, mesmo em 2007 quando Salazar foi eleito “O Grande Português” num programa promovido pela RTP aceitámos o resultado com leviandade, e esse foi provavelmente o sinal mais significativo que assistimos até ao presente ano de 2020.

A ditadura do Estado Novo nunca saiu totalmente de nós, permanece na nossa memória colectiva e emerge diariamente nos preconceitos generalizados, muitos deles difundidos nos media; da repressão às comunidades LGBTQ, passando pelo racismo estrutural provocado pelo nosso passado colonial — recorde-se o recente homicídio de Bruno Candé — ou mesmo a marginalização de outras minorias étnicas. Todo este contexto é revelador de uma transição democrática questionável, porque permitiu a integração de elementos do regime totalitário nas esferas políticas e mediáticas da democracia, ou seja, a revolução ficou incompleta, o fascismo não se silenciou, simplesmente adormeceu.

Neste sentido, importa compreender como os valores do antigo regime foram atenuados e inseridos na lógica discursiva do sistema político democrático. Nos últimos 46 anos de democracia, foram muitos os nomes que circularam entre a esfera política e mediática, com a finalidade de obter e manter um discurso dominante, produzido por opinionmakers, alguns pertencentes a movimentos nacionalistas (por exemplo, o Movimento Federalista Português) pós-25 de Abril ou mesmo elementos que estiveram directamente ligados aos governos do Estado Novo. A produção destes discursos provocou geral apatia na opinião pública, mobilizando-a sem questionar o conteúdo das opiniões veiculadas.

Se a ditadura beneficiou de um povo com uma taxa de analfabetismo elevada, a democracia beneficiou consequentemente de um povo com um baixíssimo nível (dos mais baixos na UE) de literacia mediática, ou como refere o sociólogo francês Pierre Bourdieu: “O homem político é aquele que diz: ‘Deus está connosco’. O equivalente actual de ‘Deus está connosco’ é ‘a opinião pública está connosco.’” Estes agentes políticos do sistema e respectivos espaços de comentário nos diversos canais mediáticos tradicionais revelaram-se essenciais para a formação de uma opinião pública pouco interessada, estabelecendo, assim, uma ordem social através de um discurso político beneficiado pela democracia.

Nos últimos anos, a generalidade dos portugueses olhou com preocupação para o crescimentos dos movimentos nacionalistas na Europa, nos EUA e no Brasil, mas, simultaneamente orgulhosos com a fraca expressão desses movimentos por cá, glorificávamos a solidez da nossa democracia. No entanto, tendo em consideração o contexto evolutivo da nossa democracia, não é de admirar que um partido assente nos ideais pseudo-renovados do nacional-populismo esteja a ganhar terreno no sistema político e mediático. Hoje em dia, já existe imensa literatura sobre o nacional-populismo, as suas práticas, os métodos e as estratégias, mas permitam-me recorrer a Ernesto Laclau e ao seu livro A Razão do Populismo para enquadrar o populismo enquanto uma “lógica discursiva” (e não como ideologia política) baseada na retórica do povo. Ou seja, o populismo traduz-se num megafone das conversas de café, dos encontros quotidianos entre pessoas, que normalmente têm como ponto de partida os acontecimentos tratados de forma mais sensacionalista pelos media de cariz popular. Portanto, no caso do Chega é claro este discurso, apontando ao povo que existem dois inimigos comuns: as comunidades ciganas e as elites políticas vigentes. Assim, este partido acordou o fantasma do salazarismo, agravou a “doença” que persiste em deixar-nos de rastos e está a tornar-se profundamente crónica.

Estamos, por isso, perante um abutre, que não só se aproveita das fragilidades da nossa democracia, mas mais do que isso, tira partido da reduzida literacia mediática da população portuguesa e sob o grande bastião democrata da liberdade de expressão continua a veicular discursos contra minorias, despromovendo debates fundamentais para a nossa sociedade (como o racismo estrutural). No fundo, foi o sistema político dominado pelo jogo das cadeiras do “centrão” (PS, PSD e CDS) que abriu espaço para o surgimento de um partido anti-democrático como o Chega. Resta-me apenas questionar porque é que estes partidos ignoraram sempre questões marginais à tecnocracia? E ainda mais essencial, porque é que nunca se promoveu o voto ao longo das legislaturas, ao invés do habitual apelo superficial feito pelos líderes no próprio dia das eleições? Porque é que não se promove uma Educação para os Media nas escolas? Está claro que a sensibilização para a soberania popular em democracia e a literacia mediática são dois factores em falência vertiginosa na nossa sociedade. Sem eles vamos permanecer de rastos.»

João Horta

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