Posted: 22 Aug 2020 03:46 AM PDT
«Najma al-Khatib, uma professora síria de 50 anos, conta ao “The New York Times” como oficiais gregos mascarados a levaram, com mais 21 pessoas (dois bebés), de um centro de detenção em Rodes para um bote salva-vidas sem leme e sem motor que foi abandonado em alto-mar. Segundo o jornal, as autoridades gregas expulsaram secretamente, em 31 ações realizadas desde março, 1072 requerentes de asilo. Também retiraram combustível a barcos de refugia¬dos e rebocaram-nos para as águas turcas. E abandonaram refugiados numa ilha desabitada. E expulsaram migrantes legais, enfiando-os num barco no rio Evros. Não é na Hungria ou na Polónia. É na Grécia. A chegada dos conservadores ao poder, a pandemia e o abandono dos gregos à sua sorte na tarefa de gerir a fronteira da União explicam a complacência nacional com a barbárie. Mas nada neste comportamento da Grécia a distingue de uma odiosa tirania. A diferença é que reserva o crime para quem não seja grego.
A proximidade faz-me olhar mais para as vítimas de Reguengos do que para as do Mediterrâneo. Mas sei que aquelas vidas valem o mesmo e o meu dever para com elas é o mesmo. É esta incapacidade de distinguir “nós” e “eles” que, dizem-me, me coloca num extremo. É a radicalidade com que dou igual valor à vida de um sírio e de um grego, de um português e de um líbio, de um negro e de um polícia, que me aproxima dos que acreditam no oposto: que tratar da vida dos “nossos” vale a dor necessária dos outros. No meio de nós ficam os moderados. Os que não marchariam com abolicionistas ou sufragistas radicais, que não pegariam em armas no Gueto de Varsóvia, que toleraram até há pouco tempo a discriminação legal dos homossexuais. Não teriam tomado nem o Carmo nem a Bastilha. E perante um bote à deriva com 22 seres humanos, dois bebés, carregado pela civilizadíssima Europa para alto-mar, pedem que não acicatemos a extrema-direita que já determina o que somos pelo medo que cresça.
Não me determina a mim. Ainda tenho indignação perante um barco à deriva com 22 pessoas, dois bebés. Sou do extremo que dizem que toca no outro. Porque sei que o silêncio “moderado” perante o discurso bárbaro que se torna hegemónico na Europa é o problema. Sou antirracista radical. Porque não percebo que moderação pode haver perante a violência quotidiana do racismo. Porque não estou num ponto equidistante entre a vítima e o agressor. Porque o meu respeito pelas forças de segurança, ou por qualquer outro poder, não é independente do que façam. Porque sei que o que vemos na Grécia ainda não é o fim da linha. Nem o discurso oportunista de Ventura (que esta semana veio em defesa da corrupção de Steve Bannon, chamando-lhe “uma questão qualquer de angariação de fundos” e avisando a Justiça portuguesa que nunca se atreva a investigar o Chega), o deputado que sem revolta geral propôs o confinamento especial para uma etnia. Não foi por causa dos que resistiram ao antissemitismo generalizado na Europa que ele se transformou numa indústria de ódio. Foi lentamente, tratando seres humanos como mercadoria indesejada. Por culpa da moderação conivente dos que acham que todos os extremos se tocam.»
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