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sábado, 19 de setembro de 2020

Costa e a habilidade

por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 16/09/2020)

Cavaco gravou num livro, em 2018, que Costa é “um hábil profissional da política”. Foi a forma que ele encontrou para lhe chamar cabrão. Mas em 2018 essa fama de Costa ser habilidoso já era um estafado bordão na retórica da direita, o substituto do “mentiroso” urrado sem parar quando se cagavam todos de medo ao ver Sócrates pela frente. Muito provavelmente, foi o Marcelo comentador que inventou o carimbo após as peripécias da luta entre Costa e Seguro para a liderança do PS; antes, ninguém tinha reparado em especiais habilidades de Costa, limitava-se a parecer competente. Depois ficou como eufemismo de trafulha para gasto com um alvo que não podia ser engolido pela indústria da calúnia.

No mundo feérico e obsessivo do comentariado, o termo ganhou estatuto de categoria hermenêutica, passando a ser uma forma de despachar crónicas ao metro. Há sempre alguém que imagina que existe um outro alguém preocupado com o que o primeiro alguém pensa a respeito do estado da suposta habilidade de Costa. E rapidamente o fenómeno se torna mágico, atribuindo-se à sua habilidade tudo o que pareça correr-lhe bem e, simetricamente, abrindo-se uma crise cósmica quando os acontecimentos põem em causa a incensada predestinação. Governo minoritário com apoio do BE e PCP? Habilidoso. Elogios da Europa às contas certas? Habilidoso. Recuperação do poder económico dos portugueses, explosão do turismo, défice zero, domínio nas sondagens, campeões da Europa e da Eurovisão? Super-habilidoso. Participação numa conversa privada com jornalistas depois de dar uma entrevista, quando era suposto nada ficar gravado, e participação como cidadão na vida de um clube de futebol? Temor e tremor… Que é feito do Costa hábil?

O comentariado vive de simplismos, caricaturas, deturpações, berreiro. Não poderia ser de outra forma pois estamos perante um estilo de entretenimento. Escreve-se e palra-se para plateias que se divertem a aplaudir e apupar. Mas não convidem esses bufões para cuidar da cidade pois adormecem nas muralhas ou aproveitam para vender entradas aos bárbaros. Marcelo é o exemplo supremo. Enquanto astro da TV acertava em tudo, tudo parecia fácil e cristalino no seu teatro. Escurecia-se o currículo onde era apenas mais um professor de Direito, e um viciado e vicioso jornalista de opinião, e onde tinha sido o tal falhado dirigente partidário e o tal falhado candidato à câmara de Lisboa. Os holofotes iam todos para aquela parte do palco onde imitava, com paixão e donaire, os políticos que arriscam coiro e reputação. Só que imitar não é ser, como ensina Platão. Assim que o Marcelo outra vez político apanhou uma tempestade gigante pela frente, em Março de 2020, mostrou o que era realmente: um general em quem não se pode confiar.

Já Costa viu-se coroado nos meses de Março e Abril. A direita ficou apopléctica com a visão do primeiro-ministro budista, seráfico perante a notícia de o mundo estar a desabar à sua volta. Ainda por cima, os números das infecções, mortos, vagas em hospitais pareciam não só controlados como muito melhores do que se previu no pânico inicial. Que era feito daquele Pedrógão vezes mil que estava prometido, perguntavam os pulhas? Para quando a boa nova do colapso do Serviço Nacional de Saúde e do horror a sair à rua, mordiam-se os canalhas? Não foi nada fácil para a direita decadente atravessar esse confinamento do seu ódio. E lá no fundo, porque os neurónios (ou falta deles) não dão para mais, também atribuíam à sua habilidade a roleta da propagação da epidemia em Portugal e a imagem de segurança e confiança que transmitiu em período tão original, angustiante e perigoso para a comunidade. Mas será Costa realmente esse portento de habilidade que os seus adversários agitam vencidos?

Vicente Jorge Silva pode ajudar-nos a encontrar a resposta. Em Novembro de 2017 deixou no Público a tese de que Costa não só atravessava um período de inabilidade extrema como talvez nem tivesse vocação para o cargo. O texto chama-se Que aconteceu a António Costa?, sendo banal na forma e torpe no conteúdo – excepção para a partilha de uma anedota onde se relata uma suposta conversa tida entre os dois em 2004, a qual teria levado Costa a declarar-lhe que nunca seria líder do PS nem primeiro-ministro (por não ter essa vontade, fica implícito no relato). Ora, sou comprador da veracidade dessa memória. Costa não parece ter a gana de querer atingir o topo da pirâmide, realmente, antes aparecendo como um fortuito líder que, com algum manifesto contragosto, se vê obrigado a dirigir as tropas. Essa tipologia concorda com o que todos vimos aquando dos movimentos para derrubar Seguro, em que começou logo por meter os pés pelas mãos com uma falsa partida, e depois com a campanha de merda que fez para chegar a secretário-geral. O mesmo perfil para os excessos emocionais que parecem absolutamente amadores, podendo calhar com jornalistas ou políticos. É como se ele não se importasse de regressar à função de tenente e aí descansar para não ter grandes chatices. Como se sonhasse todos os dias com o remanso de um gabinete pintarolas mas discreto, perdendo-se secretamente na contemplação das futuras sopas e descanso, mas leal ao grupo que aceitou chefiar e vestindo a camisola do serviço público até ao fim da missão.

Não querer o poder é um arcano sinal de vocação para lhe dar o melhor uso. Se for o caso, é quase perfeito. E, ironia suprema, talvez esse desprendimento pachola nasça de uma certa falta de habilidade para fazer das pulsões tribais o centro da sua vida.

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