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sábado, 12 de setembro de 2020

O que importa

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 12/09/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Confesso que ao princípio me senti atraído pela discussão pública levantada pelo pai de Famalicão e a sua “objecção de consciência” em não permitir que os filhos frequentassem a disciplina de Educação para a Cidadania e Desenvolvimento. Não obstante achar chocante que um pai, actuando em nome da sua invocada consciência, fizesse pagar o preço aos filhos, optando por os fazer chumbar de ano, pareceu-me estar ali uma verdadeira questão de separação de águas ideológicas — das que vale a pena ter, e são tão raras neste tempo do extremismo e da alarvidade instantânea servida nas redes sociais. E, no meu entusiasmo, até me cheirou que pudéssemos estar perante uma manifestação de insuportável doutrinação ideológica do Estado sobre os alunos. Que ingenuidade a minha!

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Comecei a perceber do que verdadeiramente se tratava quando li a lista dos 85 cavaleiros da liberdade individual contra o abuso estatal das criancinhas: estava ali uma exemplar representação da direita católica reac­cionária no seu melhor ou no seu pior, com a inexplicável intromissão do Sérgio Sousa Pinto. Mas, embora o hábito vista tantas vezes o monge, isso, honestamente, não chegava. Havia que ver de que se queixavam eles, em concreto. Fui então consultar as 16 matérias que integram a agora famosa disciplina de Educação para a Cidadania. E, pois bem: não só todas elas são absolutamente consensuais entre gente civilizada, como todas são altamente recomendáveis dentro do sistema de ensino, no mundo que temos hoje, na juventude entregue a si mesma que temos hoje e na confusão induzida de valores que temos hoje. Mais: é preciso ser-se desonesto intelectualmente, ser-se assumidamente hipócrita ou não ter uma genuína cultura de valores democráticos (como alguns dos 85) para conseguir sustentar que os alunos são prejudicados na sua educação ou violentados na sua liberdade por abordarem aquelas matérias.

Porque não são capazes de o dizer, os 85 agarram-se a uma única das 16 matérias em questão: a educação sexual. Ó santa paciência, estamos em pleno século XXI e aquelas cabeças agem como se estivéssemos num Estado islâmico ou no saudoso Portugal de há cem anos! Eles acham que os seus filhos não sabem que existem gays e lésbicas, que não têm de saber que existem métodos contraceptivos, que há diferenças entre homens e mulheres, mas também há direito à igualdade, que há relações amorosas diversas e famílias disfuncionais que são tão dignas de respeito como as convencionais, e todo um mar de coisas misteriosas naquelas idades que os jovens querem saber e estes zelosos pais jamais lhes explicam porque acham que é tudo “pecado”.

E até o cardeal-patriarca, que representa a Igreja Católica portuguesa, misteriosamente poupada ao escândalo universal da pedofilia na Igreja Católica, se arrola com os demais 84, como se a Igreja, aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, tivesse hoje qualquer autoridade moral no assunto. O que querem estes zelotas da moral — que as crianças ou os jovens aprendam educação sexual, direitos humanos, educação ambiental na escola, em debate uns com os outros e com os professores ou na solidão dos seus quartos, entregues às redes sociais e aos predadores sexuais, políticos, sociais?

Sim, porque aqui a escola faz o que os pais não fazem em casa, por muito que, indignados, venham jurar o contrário. E os poucos que o fazem, os poucos que se ocupam a sério da educação cívica e cidadã dos filhos, se verdadeiramente o fazem a sério, não têm de ter medo algum daquilo que eles aprendem na escola: podem sempre seguir o que lhes ensinam lá e podem contrariar isso pelo seu exemplo e pelas suas lições. Se a alternativa for, como alguns defendem, que esta disciplina passe a ser opcional, todos sabemos que o resultado prático é que o grosso dos alunos deixará de a frequentar. E, então, a educação cidadã, que é a base de uma sociedade saudável, ficará exclusivamente na mão dos pais. Mas se a alternativa é essa, eu, que tantas vezes critico a escola pública, digo sem hesitar: tenho muito mais medo de uma educação cidadã exclusivamente entregue aos pais do que de uma educação entregue aos pais e à escola.

2 Aos poucos, vai-se sabendo mais alguma coisa sobre o tão esperado e tão adiado relatório da Deloitte sobre o Novo Banco. Mas o que se sabe já se sabia: que houve negócios ruinosos de venda de património e que desde a sua venda à Lone Star os prejuízos do banco, com a tal “gestão segundo as melhores práticas”, bateu recordes de prejuízos — até aqui garantidos pelos contribuintes. O que falta saber é o essencial: quem foram os beneficiários da venda ruinosa do património do banco? Porque a suspeita que cresce é que, mais do que um assalto debaixo do nosso nariz, estejamos perante uma inenarrável humilhação. Alguém vem a nossa casa a pretexto de a remodelar, declara que os nossos móveis são todos uma porcaria e vende-os ao desbarato, sem nos dizer a quem, e no fim deixa-nos a casa vazia e apresenta-nos a conta da limpeza, que é muito superior ao valor dos móveis que tínhamos e deixámos de ter. E nós abanamos a cabeça, compreensivamente: “Não havia nada mais a fazer: o problema estava nos móveis.”

3 Em toda a minha vida, acho que só conheci de perto um Vicente, o Vicente Jorge Silva. O nome era raro e ele também o era. Morreu nesta madrugada de 8 de Setembro e, como tantas vezes acontece, morreu sem que eu tenha tido oportunidade de ter com ele a longa e tão desejada conversa que sempre quis ter. Porque eu tinha uma imensa reverência por ele, fruto de uma enorme admiração e de uma inconfessada ternura, somadas à gratidão que lhe devo: pela sua mão, eu fui dois anos colaborador da Revista do Expresso, que ele então dirigia, quando saí voluntariamente de uma RTP asfixian­te, e aqui, então, encontrei um abrigo para continuar a fazer jornalismo, e, mais tarde, foi ele que me foi buscar a uma obscura página da “Capital” e me fez colunista do “Público” durante dez maravilhosos anos.

Essas duas pontes de comando — a direcção da Revista do Expresso e a fundação e direcção do “Público” — foram dois momentos absolutamente marcantes na história do jornalismo português em democracia e na história da própria democracia. É muito fácil dizer mal do jornalismo que se faz em Portugal e, sem retirar validade a muitas das críticas, muita gente o diz sem fazer ideia das condições em que se trabalha. Mas onde e quando o Vicente esteve à frente do que se fazia, eu digo convictamente que o jornalismo que ele oferecia aos leitores era muito melhor do que o país que tínhamos — e em todos os aspectos. A ideia e o destemor de criar um jornal diário como o “Público”, de convencer alguém como Belmiro de Azevedo, um ex-industrial convertido ao retalho, a financiar um jornal que dificilmente deixaria de dar prejuízo, de fazer do zero um jornal simultaneamente moderno nas ideias e na imagem, mas clássico nas regras deontológicas e na independência informativa — onde o Vicente era inflexível —, foi, mais do que uma revolução, uma verdadeira revelação para os leitores e uma imensa luz de esperança para todos os jornalistas. O “Público”, do Vicente Jorge Silva, estabeleceu um padrão — que, com a sua saída, jamais foi igualado.

Uma vez, uma única vez em todos esses anos em que escrevi para o “Público” sob a sua direcção, ele passou-se comigo. Foi quando escrevi um texto a elogiar “O Independente”, então sob a direcção de Paulo Portas. A minha tese era que “O Independente” tinha vindo atirar pedras ao charco estagnado do politicamente correcto e o facto de o fazer assumidamente à direita era bom para o jornalismo, que parecia uma coutada da esquerda, e bom para o debate político democrático. Mas o Vicente não conseguia condescender com a quebra das regras deontológicas de que, de facto, “O Independente” fazia o pão nosso de cada edição. E, então, sem sequer me avisar, o Vicente não publicou o meu texto. Seguiu-se uma delicada e sigilosa negociação interna, mediada por um jornalista amigo de ambos. Eu não voltaria a escrever enquanto aquele texto não fosse publicado, ele não o publicaria enquanto não me descompusesse. E assim se fez: almoçámos com a indisfarçável amizade e ternura que eu sempre senti ser mútua e ser, além de todas as razões profissionais, o laço não nomeado do que, à distância, nos unia naturalmente. Então, como das infelizmente poucas vezes em que tivemos ocasião para estar juntos, o Vicente tratou-me condescendentemente, de cima para baixo, como um “mais velho”, mas com aquele seu eterno ar de gozão, de folgazão com a vida, que desmentia a sua condição de mais velho do que quer que fosse. E eu aceitei, feliz, a minha parte de rendição. Porque lhe devia bastante e porque o admirava muito: o Vicente Jorge Silva foi um príncipe do jornalismo. Que raio de vida esta em que nunca encontramos tempo, pretexto ou destemor para dizer às pessoas que verdadeiramente são importantes para nós o quanto elas são importantes e não podem morrer assim, sem mais.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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