Posted: 29 Oct 2020 04:41 AM PDT
«O SNS vive um dos piores momentos da sua história. Há uma catástrofe escondida por baixo da Covid. É um aumento da mortalidade por outras doenças. Cirurgias e consultas adiadas. Centros de Saúde abaixo de meio gás. Profissionais esgotados. Não trago para o debate se exagerámos na concentração de meios do SNS na covid. É uma conta difícil de fazer e quem a fez correu sempre riscos. Sei que não reforçámos o SNS para o resto. E o futuro é negro: para além da continuação do combate à pandemia, precisamos de preparar o SNS para responder a tudo o que perdemos nestes meses. Num SNS que está à beira da rotura e da exaustão. E isto exige dinheiro.
A resposta a esta incapacidade do SNS se preparar para recuperar surgiu ligeira, pela voz dos representantes do sector privado: aqui estamos nós para receber dinheiro por isso. Os privados precisam, para compensar as enormes perdas que terão tido nestes meses (os doentes também fugiram dos hospitais privados), dos doentes do SNS. Convido-vos a ler Jorge Torgal, uma das vozes mais sensatas nestes dias: “Quando os antigos bastonários fazem uma carta em que dizem que temos de pôr a medicina privada a trabalhar, é um discurso ideológico. Como sabemos, os privados nem para as necessidades maiores daqueles que têm meios conseguiram responder e a certa altura enviam para os hospitais públicos.”
Não é o discurso dos ex-bastonários, que mereceu resposta de um grupo de médicos, a ajuda do Presidente ou as centenas de artigos de opinião que darão aos privados o que, sozinhos, têm sido incapazes de captar. Será a asfixia do SNS. E é também ao olhar para o que se propõe no Orçamento do Estado, nesta área, que um voto favorável da esquerda a este Orçamento se revela um contrassenso.
No que toca à covid, o nosso problema não é a falta de camas ou de ventiladores. A isso é possível dar uma resposta de emergência relativamente rápida. É a falta de médicos. E o SNS continua a perdê-los. Os concursos que se vão abrindo não conseguem preencher as vagas. Porque, como disse Francisco Louçã no seu espaço de opinião na SIC Notícias, os médicos do Estado perderam, na última década, 17% do seu poder de compra e os restantes profissionais de saúde cerca de 12%. A degradação das condições de trabalho, que também resulta da falta de recursos mas não apenas de perdas salariais, leva cada vez mais médicos a procurarem o privado. Se transferirem doentes (e recursos para os pagar) do SNS para os privados, limitam-se a oferecer-lhes músculo para eles levarem os médicos que restam. Ainda mais se, ao mesmo tempo, asfixiarem o SNS.
O Governo tem dito, com razão, que aumentará cerca de 1.200 milhões o orçamento para Saúde. O que não dizia é que isso não se traduzia num aumento de transferências para o SNS – a Saúde tem muitas despesas para além disso. Pelo contrário, se olharmos para o OE de 2020 (já atualizado pelo suplementar), temos uma redução de cerca de 140 milhões nessas transferências. Se olharmos para o executado de 2020, as transferências para o SNS estagnam. Isto partindo do princípio improvável de que desta vez tudo o que está orçamentado será executado.
Estes números resultam das contas feitas pelo BE, porque as transferências para o SNS não estão documentadas nos mapas disponíveis do Orçamento Suplementar. Têm, sobre as do primeiro-ministro, a vantagem de não irem mudando todos os dias, com diferentes critérios e habilidades. E são os que mais terão a ver com a realidade que se sentirá no SNS. O melhor esclarecimento que li sobre o assunto está aqui. Ou neste, em que se mostra como o primeiro-ministro usou os números com uma liberdade pouco recomendável para quem está a debater um Orçamento.
Pelo menos olhando para o Orçamento do Estado, que é o que agora está em debate, o SNS não terá boas notícias num momento em que mais precisa delas. Sabemos para onde irá, com a fala de recursos para a atividade quotidiana, o dinheiro destinado à Saúde. Para quem esteja em condições de, no lugar do SNS, dar a resposta que a sua degradação não permite. A carta do ex-bastonários explica. É que aplausos à janela não pagam o SNS.»
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