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sábado, 3 de outubro de 2020

Ilíada, Canto IX, 438-43

por estatuadesal

(Por Valupi, in Aspirina B, 01/10/2012)

Não custa a entender. Quem defende o ostracismo de Ventura, recusando dar-lhe atenção e palco, está cheio de boas intenções: limitar a sua influência, manifestar a repugnância que a sórdida figura suscita, evitar lutar com o porco para não ficar emporcalhado. Acontece que quem assim pensa está também a pensar mal.

A Odisseia é muito mais popular do que a Ilíada mas é nesta que se encontra uma lição política fundante e fundamental: aquele que é bravo na assembleia é valente na batalha – aquele que for bravo na batalha será valente na assembleia. A capacidade de tomar a palavra e enfrentar a ameaça de injustiça, como faz Aquiles na abertura do poema na cara de um rei, não é menos heróica do que a capacidade de enfrentar Heitor junto às muralhas de Tróia. As gerações que vieram a criar a primeira forma de democracia beberam desde o berço esta e outras lições – onde o falar livremente numa comunidade, de deuses ou humanos, era toda a civilização.

Se João Miguel Tavares merece ser uma das personalidades mais importantes do regime, tendo-lhe sido oferecida a raríssima e supina honra de presidir ao mais densamente simbólico dos feriados patriotas, por que razão se foge do Ventura alegando ser má companhia? Um e outro devem o seu sucesso exactamente à mesma fórmula, tentam ocupar os mesmos segmentos de mercado. Ambos viram uma oportunidade na decadência da direita, afundada na impotência e no ódio, e criaram marcas fortes e independentes. Um tornou-se caluniador profissional especializado nos alvos de quem lhe paga. O outro alinhou com Passos e serviu de cobaia para se ensaiar em Portugal o radicalismo da direita inimiga dos direitos humanos.

Loures só foi uma derrota nas urnas, no plano da inovação política corresponde a um triunfo da fórmula pois vimos um presidente do PSD, ex-primeiro-ministro, a promover e consagrar uma cópia à portuguesa de Trump. O caminho que trouxe o Chega para os boletins de voto ficou então aberto.

O equivalente da sonsaria torpe do bracinho do Ventura a simular a saudação nazi numa manifestação encontra-se nos artigos e intervenções deste Tavares entretanto rico quando ensaia a defesa do Estado Novo e a diabolização do 25 de Abril debaixo de camadas de torpe sonsaria inspirada em Rui Ramos e quejandos. Ambos, André e João Miguel, comungam da visão intencionalmente mentirosa e alucinada em que a corrupção é a mãe de todos os males, em que quase todos (ou todos, depende do espectáculo) os políticos são corruptos e fazem leis para blindarem a corrupção na impunidade, em que o Estado não presta e deve ser reduzido à expressão mínima para não andarmos a sustentar madraços e estroinas, e em que só Passos Coelho e Joana Marques Vidal nos poderão proteger dos monstros socialistas que nos querem devorar. Os públicos a quem se dirigem são uma mistela de fanáticos, broncos e descompensados.

O Daniel Oliveira, por exemplo, entrevistou com gosto e compadrio o caluniador profissional. E ouviu dele, sem ripostar, a celebração da actividade criminosa no seio do Ministério Público ao serviço de uma agenda de perseguição política. Que razões terá para continuar sem convidar Ventura para o Perguntar não ofende quando estamos, como diria o Jerónimo, perante farinha do mesmo saco? Acaso Ventura não é interessante e importante por desvairadas razões ou sob variegados pontos de vista? Acaso os seus ouvintes não adorariam assistir à conversa sobre a podridão de Pedroso, Vara e Sócrates? Ou será que o Daniel teme ficar outra vez em silêncio face às barbaridades que saíssem do boca do seu entrevistado e, nesse caso, tal já daria que falar, e depois era chato?

Deixar o Ventura, um hipócrita que se desfaz com um sopro de decência e duas ou três noções básicas de História, sem contraditório, olhos nos olhos e de peito cheio, acaba por ser um monumento ao estado degenerado da sociedade. Uma sociedade que tem alinhado cobardemente com a violação do Estado de direito democrático ao serviço de vinganças oligárquicas e corporativas. Uma sociedade que aceitou ser cúmplice da pulsão do linchamento moral. Ventura nasceu nesse esgoto e foi subindo pela sua montanha de merda até conseguir empestar a Assembleia da República. O Portugal da indústria da calúnia sente que Ventura é um dos seus, e cala-se consolado. O Portugal que se respeita a si próprio mas que opta por fugir de um palhaço que nos quer fazer mal pagará o preço de não combater pela liberdade.

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