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domingo, 18 de outubro de 2020

O preço do "bom senso"

Posted: 17 Oct 2020 11:20 AM PDT

O Governo de um país que tenha soberania monetária tem sempre dinheiro para as suas despesas. Fixa as suas escolhas políticas no orçamento e, uma vez este aprovado, o banco central financiará o défice que estiver previsto. Ou seja, um governo soberano não pode invocar o risco de uma dívida excessiva (no dia do vencimento, o banco central já pôs o dinheiro na conta do Tesouro) para protelar a contratação de profissionais para o SNS, ou para dar um mísero aumento às pensões dos pobres, apenas a partir de Agosto.

Nem precisa de poupar no apoio extraordinário aos trabalhadores independentes e aos da parte informal da economia que cada vez mais pedem às organizações de solidariedade social comida e dinheiro para a renda da casa, para o gás, etc. Com moeda própria, no quadro de uma gravíssima crise que não tem fim à vista, o Governo pode, e deve, incluir no orçamento um rendimento de cidadania para sustentar com decência todos os que não possuem rendimentos (todos os dias há mais), ou atribuir um complemento a quem tem uma pensão abaixo desse limiar de decência.

Pode também financiar um programa de investimento público que cubra todo o país, por exemplo recuperando e dando dignidade aos bairros degradados, restaurando ou construindo pequenas infraestruturas que sirvam o bem-estar das populações. Um orçamento que responda a um estado de calamidade, deve lançar projectos com utilidade social que possam ser executados por empresas de pequena e média dimensão para que se mantenha o emprego dos menos qualificados e o dinheiro seja gasto na comunidade.

O Governo que tem moeda própria sabe que a despesa pública, quando bem direccionada, tem um efeito multiplicador sobre o produto muito significativo e gera muitos empregos. Sabe também que o limite para os seus défices não é a falta de dinheiro, é (1) a inflação, quando a economia se aproxima do pleno emprego, e (2) o défice externo, quando não for conveniente deixar flutuar demasiado a taxa de câmbio. O Governo com moeda própria não depende dos especuladores para gastar e sabe que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro (para mais explicações ver os meus Snacks de Economia Política #7 e #9). Um governo destes tem poder para controlar os movimentos de capitais especulativos que criam bolhas no imobiliário e, tendo vontade política, também pode impedir a saída do dinheiro para os paraísos fiscais.

Com o que acabo de escrever, muita coisa fica por explicar. Mas espero que baste para que se entenda o preço que estamos a pagar, e continuaremos a pagar, por termos caído na armadilha do euro.

Aliás, mesmo dentro desta armadilha, o Governo não tem fundamento para tanta prudência orçamental à custa dos mais desfavorecidos. Quando a pandemia estiver controlada através de uma vacina eficaz cobrindo a larga maioria da população nos vários países – e isso pode vir a acontecer mais tarde do que estamos a imaginar – o peso da dívida pública no PIB do nosso país será acompanhado por valores também muito elevados nos restantes países da periferia da zona euro. Não é razoavelmente concebível que a CE e o Eurogrupo venham a exigir a aplicação dos critérios de Maastricht tão cedo, até porque têm consciência de que foram responsáveis pelo grande atraso na entrega do dinheiro a fundo perdido que prometeram e, sobretudo, porque a Itália não o permitiria. Entretanto, o Brexit vai realizar-se e, a partir daí, perde toda a credibilidade o discurso de que um país que saia da UE é um país arruinado. Só será assim enquanto o seu povo eleger governos de direita que se comportem como se não tivessem soberania monetária. Como sempre disse, esta é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que haja desenvolvimento, no mínimo, temos de ser livres para escolher as políticas que nos servem, o que não é o caso dentro da UE, e aliás se verá melhor nas condições fixadas para o uso da “bazuca” dos muitos milhões que não vão dar de comer a ninguém nos próximos tempos. E serão gastos sem estratégia de desenvolvimento porque, para isso, seria preciso ter políticas monetária, industrial e comercial adequadas, exactamente aquilo de que estamos privados.

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