por estatuadesal
(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 08/10/2020)
Alexandre Abreu
A indefinição em torno da turbulência económica que enfrentamos nos próximos meses e anos provém de três fontes de incerteza principais. Por um lado, a dinâmica da pandemia: quantas e quão graves são as vagas que temos ainda pela frente até que uma vacina ou um tratamento eficaz estejam disponíveis. Em segundo lugar, o risco de espirais recessivas: em que medida é que as quebras da atividade económica (a que já ocorreu e as que possamos ter pela frente) geram elas mesmas uma dinâmica negativa de desemprego, falências, poupança cautelar e quebra do investimento que se alimente a si própria. Finalmente, a natureza e dimensão das respostas públicas: até que ponto é que estas serão capazes de contrariar a dinâmica recessiva no contexto e uma crise que é particularmente difícil de enfrentar na medida em que reúne elementos de contração da procura, restrição da oferta e perturbações das cadeias de valor internacionais.
As expectativas mais ou menos otimistas relativamente a esta matéria têm encontrado nos últimos meses entre muitos economistas (aqui, aqui e aqui, por exemplo) a peculiar expressão de uma sopa de letras, consoante a forma que se antecipa poder vir a ser assumida pela trajetória do produto e do emprego. A visão mais otimista é a de uma recessão em V: queda súbita e profunda seguida de uma recuperação igualmente rápida. Mais pessimistas são as ideias de uma recessão em U (queda súbita, período de estagnação relativamente prolongado e retoma ao fim de algum tempo), em L (queda súbita seguida de estagnação) ou em W (uma recessão dupla, com dois períodos de recuo). Pode ainda juntar-se a ideia de uma recessão com a forma do símbolo da Nike¸ que constitui provavelmente o cenário-base para a maioria das instituições e analistas: depois da queda acentuada em 2020, seguir-se-ia rapidamente um período de retoma lenta mas consistente, trazendo as economias de regresso às suas posições iniciais ao fim de três ou quatro anos.
Todas estas possibilidades assumem, no entanto, que o conjunto da economia (e das economias) se comporta de uma forma relativamente homogénea no contexto da recessão e da retoma. Há porém um risco não negligenciável de que a própria dinâmica da crise e retoma introduza ou aprofunde dinâmicas de divergência entre diferentes economias, entre diferentes setores de uma mesma economia ou entre diferentes grupos sociais.
Dentro da sopa de letras, esta ideia é representada pela ideia de uma recessão em K: depois do embate inicial, uma parte da economia recupera e prospera de forma relativamente rápida enquanto outra parte passa por um período mais duro e prolongado de empobrecimento ou estagnação.
A ideia não é nova (tendo sido referida várias vezes nos últimos anos, nomeadamente no contexto da Grande Recessão e da retoma subsequente), mas tem sido referida com especial frequência nos últimos tempos para caracterizar a crise que estamos a atravessar. Joe Biden, por exemplo, utilizou esta expressão e exprimiu esta ideia num discurso há poucas semanas. No caso dos Estados Unidos, esta divergência é por vezes também designada por uma outra metáfora: Wall Street (o setor financeiro, as empresas de maiores dimensões e os mais ricos) versus Main Street (as pequenas empresas e as pessoas comuns). De finais de março para cá, o índice Dow Jones já recuperou a quase totalidade da queda de mais de 40% que sofreu, enquanto o Nasdaq, das empresas tecnológicas, já ultrapassou largamente o seu nível anterior à crise e segue imparável. As notícias sobre o crescimento inexorável das fortunas dos multibilionários do setor tecnológico são quase diárias. No entanto, o nível de emprego permanece significativamente abaixo (e o de desemprego acima) do que sucedia antes da crise, e a situação em muitos setores é bastante menos risonha do que no caso de muitos setores tecnológicos, que em muitos casos beneficiam diretamente das mudanças comportamentais e sociais suscitadas pela própria pandemia.
De forma mais próxima e mais diretamente relevante para nós, começamos a encontrar este padrão de divergência em K também nos primeiros sinais de retoma na Europa. Enquanto, por exemplo, os dados mais recentes das encomendas industriais na Alemanha, acabados de publicar, apontam para uma recuperação quase total para os níveis pré-crise, parece bastante claro que as economias do Sul da Europa, substancialmente mais dependentes do turismo e dos serviços, dificilmente podem esperar que tal aconteça senão daqui a alguns anos. E reduzindo ainda mais a escala, sabemos também que em Portugal a crise tem afetado desproprocionalmente as pessoas e famílias com rendimentos mais baixos, menor escolaridade e empregos mais precários, bem como as empresas mais pequenas e menos robustas.
Devido quer às características particulares desta crise quer às vulnerabilidades pré-existentes muito distintas entre diferentes economias, diferentes setores e diferentes grupos sociais, existe assim um forte risco de que esta crise introduza ou reforce dinâmicas de divergência. Mitigar esse risco exigirá o reforço, e não a redução, dos mecanismos de redistribuição e convergência a todas as escalas.
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