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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Orçamento. PCP deixa Governo preso por arames depois de Costa perder Bloco

por estatuadesal

(Liliana Valente e Mariana Lima e Cunha, in Expresso Diário, 28/10/2020)

A meio do debate do Orçamento do Estado, o deputado do PSD Duarte Pacheco classificou esta aprovação sui generis do Orçamento do Estado na generalidade como um “strogonoff vegan”. Os ingredientes do molho foram os habituais PS, PCP e PEV a que foram adicionados o PAN e as duas deputadas não inscritas. Mas o cozinhado saiu com pouca consistência e em risco de azedar: o BE saltou fora - passou o seu picante para o lado da oposição - e o PCP avisou que a mistura pode borregar se o Governo não condimentar melhor o OE na especialidade. Tudo misturado, a 'geringonça' voltou a quebrar esta quarta-feira, e o caldo entornou-se como ainda não tinha acontecido: a relação entre PS e BE que já não era boa, passou a péssima - e o PCP deixou o Governo preso por arames.

Foi na verdade o momento mais marcante do debate. Depois de dois dias a ser acarinhado pelo Governo e pelo PS, o PCP deixou um aviso sonoro: “A abstenção do PCP não é um ponto de chegada. É assumida com o objetivo de abrir a discussão que falta fazer, confrontando as necessidades do povo e do país com as medidas que lhes garantem resposta, apesar da sistemática recusa do Governo em lhes corresponder", disse o líder parlamentar, João Oliveira. Acrescentou um ponto que melhora o conto: “O voto contra impediria essa possibilidade”. Para bom entendedor, fica a clarificação: esta abstenção tem sabor a chumbo e é mais táctica, olhando para a forma do debate que se vai fazer e esperando ganhos visíveis no futuro, do que pelo conteúdo.

O taticismo da abstenção do lado comunista ficou ainda evidente quando, para justificar a abstenção d'Os Verdes, o deputado José Luís Ferreira usou uma expressão que diz muito: a abstenção "tem um propósito claro", "dar mais uma oportunidade ao PS" para melhorar o documento e em nada "condiciona e em nada compromete" o voto final. O Governo tem mais uma ficha para usar numa nova ronda de negociações e a esquerda quer cobrar um preço que pode sair caro. Enquanto os socialistas se entretêm a apontar mira ao Bloco, vão ouvindo, quase desvalorizando, os avisos do PCP. Mas o PCP, que já fez isto no Suplementar (abster-se primeiro para chumbar depois) quis vincar por várias vezes que não é uma fava contado no bolso do PS.

Com a relação com o PCP encarada pelos socialistas com outros olhos, Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, fez alvo ao Bloco, mas respondendo com uma expressão usada pelo PCP: “Este é o início do caminho e não o fim do caminho que o BE quer impor”, disse a socialista. Mas a estrada é longa e cheia de obstáculos. Será um mês duro de negociações na especialidade (medida a medida) e sobre estas conversas não houve um levantar do véu muito objetivo sobre até onde está disposto o Governo a ir.

O PCP, a meio do debate, pediu “respostas claras” sobre os avanços que poderiam ter lugar e fez depender por várias vezes a evolução do seu sentido de voto daquilo que acontecer extra orçamento: nas leis laborais. António Filipe, questionando a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social frisou que este orçamento “passou a ser de emergência nacional” e que por isso “não pode ser de continuidade”, refira-se aliás que são palavras tiradas a papel químico da argumentação do BE no primeiro dia. Mas disse mais: desvalorizou a ameaça do Governo de que “não basta dizer que é preciso ter um orçamento” (Siza Vieira, no encerramento do debate usaria esse mesmo argumento do lado do Governo), e pediu que o Governo clarificasse se na especialidade estaria disposto a tornar o orçamento “socialmente aceitável”, pressupondo-se, pela argumentação do comunista que, como está, não é.

Esta maioria que se formou nesta votação é instável não só pelo lado do PCP, mas também pelo PEV, como já se viu e pelo PAN. Os dois partidos abstiveram-se (também Joacine Katar-Moreira e Cristina Rodrigues, que não tem possibilidade de falar) e deixaram avisos para o que aí vem: "Na especialidade, o PAN não se demitirá de fazer o seu trabalho . A partir de amanhã começará uma nova fase e saberemos o grau de compromisso do Governo", disse Inês Sousa-Real, a líder parlamentar do PAN.

"LÁGRIMAS DE CROCODILO" E OUTROS MIMOS PARA O BE

Quando decidiu votar contra a proposta do Governo, o Bloco estava consciente de que seria o novo alvo de todos os ataques do PS. Se dúvidas houvesse, a crispação entre os antigos parceiros foi palpável durante o discurso de encerramento de Catarina Martins. Por cada frase, multiplicavam-se os apupos e os gritos na bancada do PS. Quando acusou o Governo de se refugiar em “jogos políticos”, foi o auge - os deputados respondiam com apartes inflamados, o primeiro-ministro ria-se à gargalhada por baixo da máscara.

A partir do púlpito, Catarina esforçava-se por explicar, ponto por ponto, os motivos do Bloco. Primeiro, os de conteúdo, enumerando as insuficiências do documento no que toca ao reforço do SNS ou das prestações sociais. A seguir, um problema de fundo: se o Bloco sustenta que deu a mão ao Governo em momentos anteriores - caso do Orçamento que vigora ou do Suplementar -, dessas negociações ficou um traço de desconfiança que inquina a relação dos ex-parceiros. “Nenhum dos acordos foi cumprido no tempo certo, muitos foram pura e simplesmente esquecidos”. Daí que o Bloco tenha aprendido a “ser exigente até ao detalhe das letras mais pequenas” - e é por isso que tem agora dificuldade em explicar as tais letras pequenas que esvaziam, na prática, os anúncios do Governo.

Não é que nos tempos de 'geringonça' a sintonia fosse perfeita: Catarina Martins fez questão de recordar as aproximações do passado, já na altura “limitadas”. Mas desta vez, e “tragicamente”, “o PS deserta até desse estreito campo de entendimento”. Uma rasteira: a deserção era a acusação que o Governo dedicava ao Bloco logo no arranque do debate, acusando-o de se juntar à direita. E o Bloco quis devolvê-la, garantindo, por exemplo, que o Governo não apresentou uma verdadeira proposta conjunta para rever as leis laborais - antes uma proposta requentada que serve de arma de arremesso para obrigar o partido a continuar a votar com o Governo… ou ser pintado como o tal “desertor”.

Esse clima de ameaça, garante Catarina Martins, não funcionará: o Bloco “não viabilizará o Orçamento de olhos fechados”, só porque “aprovou antes” Orçamentos deste Governo. Só o fará se houver ganhos relevantes daqui até à votação final, a 26 de novembro. Mas mesmo nesse cenário, os cacos da antiga 'geringonça' parecem difíceis de colar.

Ana Catarina Mendes ouviu o discurso da bloquista e prometeu que as conversas na especialidade vão continuar, mas, numa intervenção dura, a líder parlamentar socialista chegaria a dizer ao BE que "não basta chorar lágrimas de crocodilo e lavar daqui as mãos". Durante o debate, os socialistas não se coibiram de criticar o BE, mas a líder parlamentar deu mais um passo e atribuiu ao voto contra do BE um propósito: "Porque vota contra o Bloco de Esquerda? Porque é mais fácil e mais cómodo estar fora das soluções quando a situação é difícil. Porque não quer partilhar o risco da gestão da crise. Digam o que quiserem, mas escolher este momento para abandonar toda a esquerda e ir para os braços da direita é um sinal de irresponsabilidade de quem tem medo de enfrentar a maior crise das suas vidas", disse.

Não há dúvidas que o Governo e os socialistas sempre preferiram o PCP. Aliás, até João Leão, ministro das Finanças, fez questão de o dizer durante o debate: acusou o BE de se "enganar" nas contas e disse que o PCP "faz um papel importantíssimo" no debate. O próximo mês ditará se chegará para aprovar o Orçamento. Na hora H tem chegado para evitar crises políticas, mas muita água vai ainda correr no moinho. Para já, o PCP, o PAN e o PEV têm o Governo encurralado no beco da especialidade.

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